Garcia de Mascarenhas — Nota biográfica
BRÁS Garcia de Mascarenhas nasceu
na vila de
Avô, — Beira
Alta, margens do Alva, — em 10 de Fevereiro de 1595. Estudou em
Coimbra, onde
se tornou conhecido pela audácia
e graça dos seus
ditos e atitudes.
Grande
espadachim, cavalheiresco e leal, muito
novo mostrou
grande predilecção pela carreira das armas, na qual se distinguirá
mais tarde.
Para desagravar
ofensa grave feita a um amigo,
feriu em duelo um
jovem fidalgo. Isto lhe valeu ser preso. Mas fugiu da cadeia, e
refugiou-se em Madrid. Em Espanha pouco se demorou, resolvendo tentar
viagens mais longas a outros e mais distantes países. Pesa-lhe muito —
confessou depois — viver na capital duma nação, cujo governo se
tornara opressor do povo de Portugal.
O dia do seu embarque foi, para
ele, um dia
feliz. Ia
contente por abandonar uma pátria inimiga da sua Pátria. Mas em breve
o navio onde tomara passagem, foi atacado pelos Turcos. Assim teve
logo ocasião de mostrar, defendendo-se com extrema valentia, as suas
grandes qualidades de soldado. O pior é que, após renhida batalha e
salvos os sobreviventes do combate pela intervenção dos tripulantes
duma nau holandesa, o comandante desta embarcou-os num bote que metia
água e abandonou-os cruelmente à mercê das ondas.
Brás Garcia de
Mascarenhas e os seus companheiros
de infortúnio puderam chegar ou regressar à Andaluzia. Ali ficaram
todos, menos ele, que de lá prosseguiu na viagem encetada, percorrendo
algumas capitais da Europa. Voltando clandestinamente a Portugal para
ver a família, não ficou muito tempo quieto. Embarcou novamente e,
desta feita, a caminho do Brasil. Tinha então vinte e oito anos.
No Brasil
bateu-se contra os Holandeses,
tomando parte nos
combates que os expulsaram desses então nossos domínios da América do
Sul. Aos trinta e sete anos voltou a Portugal — «apóstata do mar»,
como a si mesmo se chamou numa expressão de singular justeza — e em
1640 ofereceu-se a D. João IV para defender a causa sagrada da
independência nacional. Combateu valorosamente, e foi depois nomeado
governador da praça forte de Alfaiates.
Acusado
falsamente de «ter tratos ocultos com Castela», aleivosia
perversa de seus inimigos, e preso na cadeia de Sabugal,
conseguiu fazer chegar
às mãos do Rei a
narrativa em verso da infame perseguição que lhe faziam e do seu
iníquo e inexplicável cativeiro.
Eis como esse
grave e característico incidente
da vida de Brás Garcia de Mascarenhas é contado no prefácio da edição
de Viriato Trágico publicada
em 1846:
«Na prisão
solitária o privaram de toda a comunicação,
e, subtraindo-lhe pouco a pouco o mantimento, lhe pretendiam abreviar
os dias. Até que, vendo-se já desamparado de todo o favor humano, se
valeu de sua indústria mandando pedir pelo seu servente que ao menos
lhe mandassem um livro, seu ordinário alívio, já que lhe não
consentiam o divertimento de escrever; e juntamente que, para seus
achaques, lhe mandassem farinha, e linhas e tesoura para refazer seus
vestidos. Logo lhe mandaram um Flos Sanctorum, que era o que mais lhe
servia para se encomendar a Deus, e com o livro as mais miudezas que
pedia. Pegando da tesoura foi cortando as letras uma a uma, as que lhe
serviam do livro; fez cola de farinha com a qual unindo-as com muito
vagar e indústria, compaginou uma discreta carta em verso mui limado
para o senhor D. João IV, em que relatava sua prisão, e inocência, e
dependurando-a pelas linhas da muralha no escuro da noite falou a um
soldado da guarda, seu confidente, que a entregasse a seu irmão para
que logo a levasse a Lisboa, como sucedeu. Lendo o rei a carta tão bem
lançada, despediu logo um decreto em que ordenava aparecesse sem
demora em Lisboa Brás Garcia de Mascarenhas.»
Um capítulo de
romance, esta audaciosa iniciativa
dum soldado da Restauração, que de tal maneira demonstrou, afinal, não
lhe faltar imaginação poética bastante para inventar e compor lances
difíceis e pitorescos, quer na vida, quer no papel! Mas, depois de
recebido na corte com todas as honras, e de reposto no seu lugar de
governador, tudo abandonou dentro de curto prazo. E, fatigado de tanta
luta e de tanta agitação, recolheu à sua casa de Avô, onde morreu em
1656.
A obra principal de Brás Garcia de
Mascarenhas é o poema Viriato Trágico que não se publicou durante a
sua vida, e só quarenta e três anos após a sua morte foi editado pela
primeira vez.
O que pretendeu Brás Garcia de
Mascarenhas realizar nos vinte cantos do Viriato Trágico? Apenas a
ressurreição, mais ou menos exacta, das lutas do herói serrano —
serrano como o próprio autor do poema — contra os generais de Roma?
Esse é, de facto, o seu assunto. Mas o motivo inspirador da obra,
temos de ir procurá-lo no horror
que Brás Garcia
de Mascarenhas sempre sentiu e manifestou perante a escravidão a que
estava reduzido Portugal, sofrendo sob o brutal jugo de Castela. Brás
Garcia de Mascarenhas foi buscar um tema antigo — outros o fizeram e
farão — para exteriorizar mais livremente a dor, o nojo e a indignada
repulsa que, ao ver o seu País dominado por outrem, lhe angustiara a
alma e o espírito desde a primeira juventude.
Ele que não
pudera viver em Espanha porque
a Espanha nos
oprimia, quis e pôde evocar, com veemência e sinceridade, a cólera, o
arrojo, a bravura inflexível de Viriato e das suas hostes, ameaçados e
perseguidos pela força e pela ambição romanas.
O pastor da Serra
da Estrela respirara o mesmo
hálito beirão que mais tarde bafejaria à nascença o futuro cantor das
suas glórias. Irmãos, ambos, irmãos através dos séculos, pela forte,
comum e desinteressada devoção ao berço natal. O poema de Brás Garcia
de Mascarenhas dá legitimamente ensejo a muitas críticas e censuras?
Quem
o nega? Mas
censuras e críticas de carácter só literário, não de natureza cívica.
Nesse aspecto, possui grandeza incontestável. E, tal como o poeta
imaginou um epitáfio vibrante para o seu herói, também nós nos
atrevemos a lembrar que, na lápide em que a sua memória fosse alguma
vez honrada e consagrada, estas palavras de justiça e
de saudade
se poderiam inscrever:
Brás Garcia de
Mascarenhas, patriota insigne,
tanto na sua
heróica existência, como na sua poesia, soube sempre afirmar com
altivez e sinceridade o seu devotado e profundo amor a Portugal.
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