Admirável mundo novo

 

Um rio de suor inunda os sapatos a cada passo e não há salvação para o calor da manhã que se abate sobre Manila. Os termómetros registam mais de 40 graus à sombra. O único alívio à mão são alguns bocados de gelo arrancados a picador que se vão apanhando nas bancas que vendem refrigerantes na rua. Mas é um alívio momentâneo. Segundos depois, o calor abrasador, os fumos dos milhares de escapes, a humidade e o cheiro agridoce que se desprende de insondáveis iguarias cozinhadas ao ar livre voltam a tomar conta dos sentidos. Longe dos bairros de casas e jardins murados onde moram as famílias filipinas afluentes, as medidas de segurança só mudam na tecnologia. Em vez de arame farpado, câmaras de vídeo e seguranças armados, a imensa maioria dos habitantes da grande Manila instalam grades nas janelas e varandas. Mesmo na mais pequena barraca de madeira.

 

Há 15 anos, foram estas as primeiras impressões da capital das Filipinas, onde existia ainda uma outra cidade dentro da cidade, conhecida por 'Smokey Mountain', uma lixeira a céu aberto, alta como um prédio de 12 andares, que assegurava o sustento a cerca de 30 mil pessoas, famílias inteiras que viviam da apanha de lixo para reciclagem. A "montanha", que deve o apelido à nuvem de gás metano que se desprendia das toneladas de detritos, foi arrasada em 1995. Mas as coisas não mudam por decreto e hoje, a 20 km do centro de Manila, o negócio continua em Payatas, onde todos os dias são descarregadas 3 mil toneladas de lixo urbano, que alimentam agora 18 mil famílias - cerca de 92 mil pessoas para quem os 3 euros que conseguem ganhar por dia a reunir papel, plástico, vidro e metal são rendimento superior ao de outras actividades. 'Smokey Valley', como se chama agora este novo bairro de lata, não está no 'ranking' dos maiores ou dos mais miseráveis bairros de lata do mundo, mas a miséria é semelhante. Na Ásia, o primeiro lugar cabe a Dharavi, em Bombaim (a 4ª maior cidade do mundo com 18,1 milhões de habitantes), onde mora mais de um milhão de pessoas e onde as receitas anuais das pequenas oficinas e fabriquetas domésticas chegam a ultrapassar os 500 milhões de euros.

 

Vem tudo isto a vários propósitos: do World Urban Fórum, das Nações Unidas, que termina amanhã em Vancouver, no Canadá; do relatório divulgado pela Habitat, organização da ONU, sobre a evolução mundial das populações urbanas; e da vontade anunciada por Bill Gates de trocar os escritórios da Microsoft pelos da sua fundação filantrópica.

 

As projecções da ONU são assustadoras: em 2050, dois terços da população do planeta viverá em cidades; mas já em 2008, mais de metade ter-se-á mudado para uma zona urbana, a um ritmo avassalador, que hoje é de 180 mil pessoas a cada 24 horas; em 2030, 3,9 mil milhões de pessoas terão assentado arraiais nas zonas urbanas dos países em desenvolvimento; e é também por esta altura, que se encontrarão na Ásia e em África os números mais altos de habitantes urbanos. O desequilíbrio que toda esta migração irá provocar é óbvio e exemplos não faltam um pouco por todo o mundo, das favelas do Rio de Janeiro aos bairros de lata de Luanda. A dúvida é saber se haverá algum remédio. Bill Gates faz por isso. Como milhares de outros cidadãos anónimos. Mesmo que não haja remédio, que é o mais provável.

- Mónica Bello
mbello @ economicasgps.com

artigo do jornal "Diário Económico"  (2006)
 

 

 

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