AS GRANDES QUESTÕES
DO NOSSO TEMPO
(Pour sortir du vingtième siècle, 1981)
Editorial Notícias
Tradução de Adelino dos Santos Rodrigues
INTRODUÇÃO
NA NOITE DO SÉCULO
Quem somos? Donde vimos? Para onde vamos? Temos respostas físicas,
biológicas, antropológicas, sociológicas e históricas cada vez mais
correctas a estas interrogações. Mas essas respostas não abrem
interrogações muito mais vastas do que as que fecham? Vivemos num universo
onde constantemente, às miríades, há estrelas que morrem, brilham, nascem
e renascem. Somos seres físicos situados no terceiro satélite de um
pequeno Sol da Via Láctea. Somos os seres biológicos mais cerebralmente
desenvolvidos do ramo cerebralmente mais desenvolvido da evolução animal.
Somos humanos da espécie chamada homo sapiens, para quem o problema, o
enigma, o mistério maiores são a sua própria capacidade para resolver os
problemas, esclarecer os enigmas, analisar os mistérios. Somos partes
constitutivas, integradas, autónomas e ao mesmo tempo escravas de
sociedades gigantescas chamadas nações. Estamos no quinquagésimo milénio —
o quinto milésimo século — do futuro das sociedade humanas, no décimo
milénio da aventura histórica das sociedades - Estados, e vamos talvez
abeirar-nos do terceiro milénio da era cristã/ocidental.
Mas ficámos irremediavelmente perplexos e desorientados sobre a nossa
situação no mundo desde que soubemos que nos encontrávamos num piãozinho
que gira em pleno céu à roda de uma bola de fogo. E quando compreendemos
que o nosso Sol era um astro pigmeu perdido entre milhares de milhões de
estrelas, relegado para a periferia de uma galaxiazinha dos subúrbios,
perdemos toda a certeza fundamental acerca da nossa situação, do nosso
destino, do nosso sentido.
Sabemos donde vem e para onde vai o universo de que jazemos parte? Sabemos
quando terminará e como se metamorfoseará o nosso Sol? Sabemos se a vida
tem um sentido e se dá sentido à nossa existência? Sabemos quem somos?
Concebemos realmente a relação entre a nossa natureza e a nossa cultura? A
nossa animalidade e a nossa humanidade? Sabe realmente o homo sapiens o
que são razão e loucura, o que as opõe e o que as une?
Sabemos o que são os Estados-Nações cuja vida tecemos e que tecem a nossa
própria vida? Sabemos a que obedece a História? Leis? Necessidade? Acaso?
Caprichos? Tudo isso ao mesmo tempo? Alternadamente? Sabemos se nesta
pré-alvorada do terceiro milénio a história da humanidade tende para uma
realização grandiosa? Para um insucesso total? Para uma pateada
interminável? O mundo caminha imperturbavelmente para o desenvolvimento e
o progresso, apenas através de sobressaltos temporários e crises locais,
ou as ideias do progresso ou desenvolvimento desorientaram-nos e
conduzem-nos ao desastre?
Sabemos o que se passou no nosso século? Somos capazes de nos recordar de
que ele foi não só constantemente atravessado por guerras, opressões e
crises, mas também devastado por duas matanças/carnificinas mundiais? Já
esquecemos a primeira, apagada pela segunda, e a imagem da segunda não se
foi apagando até surgir de novo, actualmente, o receio de uma terceira
virtual/eventual?
Sabemos que a I Guerra Mundial proveio do choque dos Estados-Nações,
imperialismos, capitalismos, e que foi dela que provieram a Revolução de
Outubro, o estalinismo, o fascismo e o nazismo. Sabemos o que é o
imperialismo? É realmente apenas o estádio supremo do capitalismo ou antes
o precedeu como agora lhe sucede? Sabemos o que é o capitalismo? É um
sistema? Um ser real dotado de vida? Um mito? Tudo isso ao mesmo tempo?
Cerca de meio século após o seu triunfo e a sua agonia, sabemos o que é o
nazismo? Sabemos o que é o fascismo que evocamos e condenamos
constantemente? Sabemos o que foi o estalinismo? Sabemos o que é a
sociedade chamada soviética em que os sovietes não têm nenhum poder e o
Estado chamado operário onde os operários não podem fazer greve?
E no entanto! Não dispomos de redes de informações / comunicações
incontáveis, instantâneas e universais como a humanidade jamais conheceu?
Não temos conhecimento e ciência prodigiosamente desenvolvidos acerca do
homem, da sociedade e da história? Não dispomos de psicanálises e
socioanálises que permitem separar o real e o verdadeiro do fantasma, do
mito e da ideologia?
Sendo assim, os progressos da informação, da comunicação, do conhecimento,
da ciência e da desmistificação, apesar de nos esclarecerem, não
contribuirão também para a nossa desorientação?
Sabemos o que o jornal e o ecrã de televisão nos colocam diante dos olhos?
Vemos o que se nos mete pelos olhos dentro? Percebemos o que vemos e que
já invadiu o horizonte? Concebemos correctamente o que percebemos? Não
estamos tão cegos, ou mais, como estavam em 1937, 1938 e 1939 os nossos
predecessores? Não é isto que nos acontece: não sabermos o que nos
acontece? No sabemos lo que nos pasa, y eso es lo que pasa (Ortega y
Gasset).
O DESAFIO DO POLÍTICO
Não podemos alhear-nos da dimensão política
se queremos compreender o nosso mundo e o nosso tempo, se queremos
influenciar os nossos destinos e o destino. Mas como conceber a política?
A política lança o maior desafio ao conhecimento. A política é uma coisa
geral que requer ideias gerais num mundo em que os conhecimentos gerais
são insuficientes por serem gerais e os conhecimentos especializados são
insuficientes por serem especializados. A política diz respeito a todos os
domínios do conhecimento do homem e da sociedade, ainda que esses
conhecimentos sejam ao mesmo tempo balbuciantes, compartimentados e
enganadores. A política trata do que há de mais complexo no universo — os
assuntos humanos —, e a sua relação com os assuntos humanos tornou-se
extremamente complexa. Com efeito, o não-político não pode ser isolado do
político, mas ao mesmo tempo não se pode reduzir tudo ao político. Tudo o
que é não-político comporta pelo menos uma dimensão política: a ecologia,
a demografia, o nascimento, a juventude, a velhice, a saúde, a habitação,
o bem-estar, o mal-estar, o livre trânsito dos espermatozóides, o controlo
das ovulações, etc. Inversamente, tudo o que é político comporta também,
sempre, uma dimensão não-política. Mais profundamente, as nossas vidas, as
nossas mortes, as nossas venturas, as nossas desventuras escapam em todos
os sentidos ao político. Mas a vida e a morte de cada humano dependem
também da determinação política, a vida e a morte da humanidade entram
doravante no jogo político entre Potências e impotências.
A política, de que tudo depende, depende também de tudo o que depende
dela. A política que decide da economia, da sociedade, do exército,
depende ela própria de condições económicas, sociais e militares. A
política é o preliminar que depende de múltiplos preliminares que dependem
dela. No fim de contas, o destino do mundo depende do destino político,
que depende do destino do mundo...
A política lança o maior desafio à acção. Toda a acção é incerta e
necessita de uma estratégia, isto é, de uma arte de agir em condições
aleatórias e adversas. Mas a acção política é um jogo particularmente
incerto em que as acções podem provocar reacções que a destruam, em que o
efeito pode atraiçoar a intenção, em que os fins se podem transformar em
meios e os meios em fins. O mais impressionante e frequente em política é
a derivação, a perversão e o desvio da acção. Por isso a observação de
Saint-Just tem mais valor do que nunca: "Todas as artes têm produzido
maravilhas, só a arte de governar tem produzido apenas monstros". Não é
que todas as acções políticas tenham sido animadas pela ambição, pela sede
de poder, pelo ubris, (ubris: desmesura, escesso, incivilidade)
isto é, pelo pior ou pelo delírio. Pelo contrário, são inúmeros os actos
políticos inspirados pelo amor à cidade e à humanidade, pela dedicação,
pela vontade de edificar um mundo melhor. Mas como na tragédia de Goethe,
em que as boas intenções de Fausto provocam a perda de Margarida, enquanto
as más acções de Mefistófeles acabam por a salvar, também em política de
boas intenções está o Inferno cheio, ao passo que as intenções infernais
desencadeiam em reacção intervenções benéficas.
A política ocupa-se do que há de mais complexo e precioso: a vida, o
destino, a liberdade dos indivíduos, das colectividades e doravante da
humanidade. E no entanto é na política que imperam as ideias mais
simplistas, as menos fundadas, as mais brutais e as mais mortíferas. Nessa
esfera, a mais complexa de todas, impera o pensamento menos complexo. As
estruturas mentais mais infantis impõem-lhe uma visão maniqueísta em que
se opõem Verdade/Mentira, Bem/Mal. É na esfera política que imperam o
pensamento fechado, o pensamento dogmático, o pensamento fanático, o tabu,
o sagrado... Claro que como tudo o que é humano a política alimenta-se de
mitos, que por sua vez se alimentam das nossas aspirações mais profundas.
Mas foi no mito político que se refugiaram e vazaram as escatologias, as
promessas de Salvação que transformaram os mitos em ilusões.
Vou tentar mostrar neste livro que a pobreza de pensamento e a riqueza de
ilusões políticas contribuem para nos conduzir a tragédias e desastres.
Vou tentar mostrar que, consistindo embora em jogos e conflitos de
interesses, de forças, de poderes, de classes, de ideologias e de
delírios, a política é, no seu cerne, um jogo do erro e da verdade. Por
outras palavras, não é destituído de importância, não é acessório, antes é
vital não nos enganarmos em política, e é vital que a política, que
transporta consigo as nossas aspirações, não se engane nem nos engane.
Vou tentar mostrar que a política exige vitalmente um pensamento que
consiga erguer-se ao nível da complexidade do próprio problema político e
corresponder ao querer-viver da espécie humana.
- Edgar Morin
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