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Edgar Morin

http://www.comitepaz.org.br/Edgar_Morin.htm

 

Paradoxalmente, o caos em que a humanidade corre o risco de mergulhar traz em seu bojo sua própria e última oportunidade. Por quê? Para começar, porque a proximidade do perigo favorece as instâncias de conscientização, que podem então multiplicar-se, ampliar-se e fazer surgir uma grande política de salvação do mundo. E, sobretudo, pela seguinte razão: quando um sistema é incapaz de resolver seus problemas vitais, ou ele se desintegra, ou é capaz, dentro de sua própria desintegração, de metamorfosear-se num metasistema mais rico, capaz de buscar soluções para esses problemas. - Edgar Morin

http://www.comitepaz.org.br/rumo_ao_abismo.htm

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

AS GRANDES QUESTÕES

DO NOSSO TEMPO

 

(Pour sortir du vingtième siècle, 1981)

Editorial Notícias

Tradução de Adelino dos Santos Rodrigues

 

INTRODUÇÃO


NA NOITE DO SÉCULO


Quem somos? Donde vimos? Para onde vamos? Temos respostas físicas, biológicas, antropológicas, sociológicas e históricas cada vez mais correctas a estas interrogações. Mas essas respostas não abrem interrogações muito mais vastas do que as que fecham? Vivemos num universo onde constantemente, às miríades, há estrelas que morrem, brilham, nascem e renascem. Somos seres físicos situados no terceiro satélite de um pequeno Sol da Via Láctea. Somos os seres biológicos mais cerebralmente desenvolvidos do ramo cerebralmente mais desenvolvido da evolução animal. Somos humanos da espécie chamada homo sapiens, para quem o problema, o enigma, o mistério maiores são a sua própria capacidade para resolver os problemas, esclarecer os enigmas, analisar os mistérios. Somos partes constitutivas, integradas, autónomas e ao mesmo tempo escravas de sociedades gigantescas chamadas nações. Estamos no quinquagésimo milénio — o quinto milésimo século — do futuro das sociedade humanas, no décimo milénio da aventura histórica das sociedades - Estados, e vamos talvez abeirar-nos do terceiro milénio da era cristã/ocidental.


Mas ficámos irremediavelmente perplexos e desorientados sobre a nossa situação no mundo desde que soubemos que nos encontrávamos num piãozinho que gira em pleno céu à roda de uma bola de fogo. E quando compreendemos que o nosso Sol era um astro pigmeu perdido entre milhares de milhões de estrelas, relegado para a periferia de uma galaxiazinha dos subúrbios, perdemos toda a certeza fundamental acerca da nossa situação, do nosso destino, do nosso sentido.

Sabemos donde vem e para onde vai o universo de que jazemos parte? Sabemos quando terminará e como se metamorfoseará o nosso Sol? Sabemos se a vida tem um sentido e se dá sentido à nossa existência? Sabemos quem somos? Concebemos realmente a relação entre a nossa natureza e a nossa cultura? A nossa animalidade e a nossa humanidade? Sabe realmente o homo sapiens o que são razão e loucura, o que as opõe e o que as une?


Sabemos o que são os Estados-Nações cuja vida tecemos e que tecem a nossa própria vida? Sabemos a que obedece a História? Leis? Necessidade? Acaso? Caprichos? Tudo isso ao mesmo tempo? Alternadamente? Sabemos se nesta pré-alvorada do terceiro milénio a história da humanidade tende para uma realização grandiosa? Para um insucesso total? Para uma pateada interminável? O mundo caminha imperturbavelmente para o desenvolvimento e o progresso, apenas através de sobressaltos temporários e crises locais, ou as ideias do progresso ou desenvolvimento desorientaram-nos e conduzem-nos ao desastre?


Sabemos o que se passou no nosso século? Somos capazes de nos recordar de que ele foi não só constantemente atravessado por guerras, opressões e crises, mas também devastado por duas matanças/carnificinas mundiais? Já esquecemos a primeira, apagada pela segunda, e a imagem da segunda não se foi apagando até surgir de novo, actualmente, o receio de uma terceira virtual/eventual?


Sabemos que a I Guerra Mundial proveio do choque dos Estados-Nações, imperialismos, capitalismos, e que foi dela que provieram a Revolução de Outubro, o estalinismo, o fascismo e o nazismo. Sabemos o que é o imperialismo? É realmente apenas o estádio supremo do capitalismo ou antes o precedeu como agora lhe sucede? Sabemos o que é o capitalismo? É um sistema? Um ser real dotado de vida? Um mito? Tudo isso ao mesmo tempo? Cerca de meio século após o seu triunfo e a sua agonia, sabemos o que é o nazismo? Sabemos o que é o fascismo que evocamos e condenamos constantemente? Sabemos o que foi o estalinismo? Sabemos o que é a sociedade chamada soviética em que os sovietes não têm nenhum poder e o Estado chamado operário onde os operários não podem fazer greve?


E no entanto! Não dispomos de redes de informações / comunicações incontáveis, instantâneas e universais como a humanidade jamais conheceu? Não temos conhecimento e ciência prodigiosamente desenvolvidos acerca do homem, da sociedade e da história? Não dispomos de psicanálises e socioanálises que permitem separar o real e o verdadeiro do fantasma, do mito e da ideologia?


Sendo assim, os progressos da informação, da comunicação, do conhecimento, da ciência e da desmistificação, apesar de nos esclarecerem, não contribuirão também para a nossa desorientação?

Sabemos o que o jornal e o ecrã de televisão nos colocam diante dos olhos? Vemos o que se nos mete pelos olhos dentro? Percebemos o que vemos e que já invadiu o horizonte? Concebemos correctamente o que percebemos? Não estamos tão cegos, ou mais, como estavam em 1937, 1938 e 1939 os nossos predecessores? Não é isto que nos acontece: não sabermos o que nos acontece? No sabemos lo que nos pasa, y eso es lo que pasa (Ortega y Gasset).
 

 

O DESAFIO DO POLÍTICO

 

Não podemos alhear-nos da dimensão política se queremos compreender o nosso mundo e o nosso tempo, se queremos influenciar os nossos destinos e o destino. Mas como conceber a política?


A política lança o maior desafio ao conhecimento. A política é uma coisa geral que requer ideias gerais num mundo em que os conhecimentos gerais são insuficientes por serem gerais e os conhecimentos especializados são insuficientes por serem especializados. A política diz respeito a todos os domínios do conhecimento do homem e da sociedade, ainda que esses conhecimentos sejam ao mesmo tempo balbuciantes, compartimentados e enganadores. A política trata do que há de mais complexo no universo — os assuntos humanos —, e a sua relação com os assuntos humanos tornou-se extremamente complexa. Com efeito, o não-político não pode ser isolado do político, mas ao mesmo tempo não se pode reduzir tudo ao político. Tudo o que é não-político comporta pelo menos uma dimensão política: a ecologia, a demografia, o nascimento, a juventude, a velhice, a saúde, a habitação, o bem-estar, o mal-estar, o livre trânsito dos espermatozóides, o controlo das ovulações, etc. Inversamente, tudo o que é político comporta também, sempre, uma dimensão não-política. Mais profundamente, as nossas vidas, as nossas mortes, as nossas venturas, as nossas desventuras escapam em todos os sentidos ao político. Mas a vida e a morte de cada humano dependem também da determinação política, a vida e a morte da humanidade entram doravante no jogo político entre Potências e impotências.


A política, de que tudo depende, depende também de tudo o que depende dela. A política que decide da economia, da sociedade, do exército, depende ela própria de condições económicas, sociais e militares. A política é o preliminar que depende de múltiplos preliminares que dependem dela. No fim de contas, o destino do mundo depende do destino político, que depende do destino do mundo...


A política lança o maior desafio à acção. Toda a acção é incerta e necessita de uma estratégia, isto é, de uma arte de agir em condições aleatórias e adversas. Mas a acção política é um jogo particularmente incerto em que as acções podem provocar reacções que a destruam, em que o efeito pode atraiçoar a intenção, em que os fins se podem transformar em meios e os meios em fins. O mais impressionante e frequente em política é a derivação, a perversão e o desvio da acção. Por isso a observação de Saint-Just tem mais valor do que nunca: "Todas as artes têm produzido maravilhas, só a arte de governar tem produzido apenas monstros". Não é que todas as acções políticas tenham sido animadas pela ambição, pela sede de poder, pelo ubris, (ubris: desmesura, escesso, incivilidade) isto é, pelo pior ou pelo delírio. Pelo contrário, são inúmeros os actos políticos inspirados pelo amor à cidade e à humanidade, pela dedicação, pela vontade de edificar um mundo melhor. Mas como na tragédia de Goethe, em que as boas intenções de Fausto provocam a perda de Margarida, enquanto as más acções de Mefistófeles acabam por a salvar, também em política de boas intenções está o Inferno cheio, ao passo que as intenções infernais desencadeiam em reacção intervenções benéficas.


A política ocupa-se do que há de mais complexo e precioso: a vida, o destino, a liberdade dos indivíduos, das colectividades e doravante da humanidade. E no entanto é na política que imperam as ideias mais simplistas, as menos fundadas, as mais brutais e as mais mortíferas. Nessa esfera, a mais complexa de todas, impera o pensamento menos complexo. As estruturas mentais mais infantis impõem-lhe uma visão maniqueísta em que se opõem Verdade/Mentira, Bem/Mal. É na esfera política que imperam o pensamento fechado, o pensamento dogmático, o pensamento fanático, o tabu, o sagrado... Claro que como tudo o que é humano a política alimenta-se de mitos, que por sua vez se alimentam das nossas aspirações mais profundas. Mas foi no mito político que se refugiaram e vazaram as escatologias, as promessas de Salvação que transformaram os mitos em ilusões.
Vou tentar mostrar neste livro que a pobreza de pensamento e a riqueza de ilusões políticas contribuem para nos conduzir a tragédias e desastres. Vou tentar mostrar que, consistindo embora em jogos e conflitos de interesses, de forças, de poderes, de classes, de ideologias e de delírios, a política é, no seu cerne, um jogo do erro e da verdade. Por outras palavras, não é destituído de importância, não é acessório, antes é vital não nos enganarmos em política, e é vital que a política, que transporta consigo as nossas aspirações, não se engane nem nos engane.


Vou tentar mostrar que a política exige vitalmente um pensamento que consiga erguer-se ao nível da complexidade do próprio problema político e corresponder ao querer-viver da espécie humana.

- Edgar Morin

 

 


 

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