Prefácio do livro
A
ÁRVORE DO CONHECIMENTO
O ponto de partida desta obra é
surpreendentemente simples: a vida é um processo de conhecimento;
assim, se o objetivo é compreendê-la, é necessário entender como os
seres vivos conhecem o mundo. Eis o que Humberto Maturana e
Francisco Varela chamam de biologia da cognição. O modo como se dá o
conhecimento é um dos assuntos que há séculos instiga a curiosidade
humana. Desde o Renascimento, o conhecimento em suas diversas formas
tem sido visto como a representação fiel de uma realidade
independente do conhecedor. Ou seja, as produções artísticas e os
saberes não eram considerados construções da mente humana. Com
alguns intervalos de contestação (como aconteceu logo no início do
século 20, por exemplo), a idéia de que o mundo é pré-dado em
relação à experiência humana é hoje predominante – e isso talvez
mais por motivos filosóficos, políticos e econômicos do que
propriamente por causa de descobertas científicas de laboratório.
Segundo essa teoria, nosso cérebro recebe
passivamente informações vindas já prontas de fora. Num dos modelos
teóricos mais conhecidos, o conhecimento é apresentado como o
resultado do processamento (computação) de tais informações. Em
conseqüência, quando se investiga o modo como ele ocorre (isto é,
quando se faz ciência cognitiva), a objetividade é privilegiada e a
subjetividade é descartada como algo que poderia comprometer a
exatidão científica. Tal modo de pensar se chama representacionismo,
e constitui o marco epistemológico prevalente na atualidade em nossa
cultura. Sua proposta central é a de que o conhecimento é um
fenômeno baseado em representações mentais que fazemos do mundo. A
mente seria, então, um espelho da natureza. O mundo conteria
“informações” e nossa tarefa seria extrai-las dele por meio da
cognição. Como aconteceu com muitas outras, essa posição teórica
também produziu conseqüências práticas e éticas. Veio, por exemplo,
reforçar a crença de que o mundo é um objeto a ser explorado pelo
homem em busca de benefícios. Essa convicção constitui a base da
mentalidade extrativista – e com muita freqüência predatória –
dominante entre nós. A idéia de extrair recursos de um mundo-coisa,
descartando em massa os subprodutos do processo, estendeu-se às
pessoas, que assim passaram a ser utilizadas e, quando se revelam
“inúteis”, são também descartadas. Como todos sabem, a exclusão
social alcança hoje em muitos países proporções espantosas, em
especial no continente africano e na América Latina. Ao nos
convencer de que cada um de nós é separado do mundo (e, em
conseqüência, das outras pessoas), a visão representacionista em
muitos casos terminou desencadeando graves distorções de
comportamento, tanto em relação ao ambiente quanto no que diz
respeito à alteridade.
O representacionismo é um dos fundamentos da
cultura patriarcal sob a qual vive hoje boa parte do mundo,
inclusive as Américas. A esse respeito, lembremos um dado histórico
comentado por Hannah Arendt em relação aos bôeres, europeus em sua
maioria descendentes de holandeses que iniciaram a colonização da
África do Sul no século 17. O contato com os nativos sempre os
chocava, diz Arendt. Para aqueles homens brancos, o que tornava os
negros diferentes não era propriamente a cor da pele, mas o fato de
que eles se comportavam como se fizessem parte da natureza. Não
haviam, como os europeus, criado um âmbito humano separado do mundo
natural. Do ponto de vista dos bôeres, essa ligação tão íntima com o
ambiente transformava os nativos em seres estranhos. Era como se
eles não pertencessem à espécie humana. Por serem parte da natureza,
eram vistos como mais um “recurso” a ser explorado. Por isso, era
“justo” que fossem amplamente utilizados como produtores de energia
mecânica no trabalho escravo, ou então simplesmente massacrados. Eis
um exemplo do tipo de alteridade gerado pelo modelo mental
fragmentador. A fragmentação traduz a separação sujeito-objeto,
principal característica da concepção representacionista. Hoje, mais
do que nunca, o representacionismo pretende que continuemos
convencidos de que somos separados do mundo e que ele existe
independentemente de nossa experiência. Foi exatamente para mostrar
que as coisas não são tão esquemáticas assim que surgiu A Árvore do
Conhecimento. Eis a sua tese central: vivemos no mundo e por isso
fazemos parte dele; vivemos com os outros seres vivos, e portanto
compartilhamos com eles o processo vital. Construímos o mundo em que
vivemos durante as nossas vidas. Por sua vez, ele também nos
constrói ao longo dessa viagem comum. Assim, se vivemos e nos
comportamos de um modo que torna insatisfatória a nossa qualidade de
vida, a responsabilidade cabe a nós. Ao contrário das tentativas
anteriores de contestar pura e simplesmente o representacionismo, as
idéias de Maturana e Varela têm nuanças que lhes proporcionam uma
leveza e uma perspicácia que constituem a essência de sua
originalidade. Para eles, o mundo não é anterior à nossa
experiência. Nossa trajetória de vida nos faz construir nosso
conhecimento do mundo – mas este também constrói seu próprio
conhecimento a nosso respeito. Mesmo que de imediato não o
percebamos, somos sempre influenciados e modificados pelo que vemos
e sentimos. Quando damos um passeio pela praia, por exemplo, ao fim
do trajeto estaremos diferentes do que estávamos antes. Por sua vez,
a praia também nos percebe. Estará diferente depois da nossa
passagem: terá registrado nossas pegadas na areia – ou terá de lidar
também com o lixo com o qual porventura a tenhamos poluído. Do mesmo
modo, as águas de um rio vão abrindo o seu trajeto por entre os
acidentes e as irregularidades do terreno. Mas estes também ajudam a
moldar o itinerário, pois nem a correnteza nem a geografia das
margens determinam isoladamente o curso fluvial: ele se estrutura
de um modo interativo, o que nos revela como as coisas se determinam
e se constróem umas às outras. Por serem assim, a cada momento elas
nos surpreendem, revelando-nos que aquilo que pensávamos ser
repetição sempre foi diferença, e o que julgávamos ser monotonia
nunca deixou de ser criatividade. Tomemos ainda outra metáfora: não
são só os timoneiros que dirigem os navios.
O meio ambiente também pilota as embarcações, por
meio das correntes marítimas, dos ventos, dos acidentes de percurso,
das tempestades e assim por diante. Dessa forma os pilotos guiam,
mas também são guiados. Não há velejador experiente que não saiba
disso. Portanto, pode-se dizer que construímos o mundo e, ao mesmo
tempo, somos construídos por ele. Como em todo esse processo entram
sempre as outras pessoas e os demais seres vivos, tal construção é
necessariamente compartilhada. Para mentes condicionadas como as
nossas não é nada fácil aceitar esse ponto de vista, porque ele nos
obriga a sair do conforto e da passividade de receber informações
vindas de um mundo já pronto e acabado – tal como um produto recém
saído de uma linha de montagem industrial e oferecido ao consumo.
Pelo contrário, a idéia de que o mundo é construído por nós, num
processo incessante e interativo, é um convite à participação ativa
nessa construção. Mais ainda, é um convite à assunção das
responsabilidades que ela implica. Não se trata, porém, de uma
escolha retórica, e sim do cumprimento de determinações que derivam
da nossa própria condição de viventes. Maturana e Varela mostram que
a idéia de que o mundo não é pré-dado, e que o construímos ao longo
de nossa interação com ele, não é apenas teórica: apóia-se em
evidências concretas. Várias delas estão expostas – com a freqüente
utilização de exemplos e relatos de experimentos – nas páginas deste
livro.
Em suma: se a vida é um processo de conhecimento,
os seres vivos constroem esse conhecimento não a partir de uma
atitude passiva e sim pela interação. Aprendem vivendo e vivem
aprendendo. Essa posição, como já vimos, é estranha a quase tudo o
que nos chega por meio da educação formal.
As teorias de Maturana e Varela constituem uma
concepção original e desafiadora, cujas conseqüências éticas agora
começam a ser percebidas com crescente nitidez. Nos últimos anos,
por exemplo, tal compreensão vem se ampliando de modo significativo
e tem influenciado muitas áreas do pensamento e atividade humanos. A
Árvore do Conhecimento tornou-se um clássico, ou melhor, recebeu o
justo reconhecimento de seu classicismo inato. Por isso, é
importante contar aqui as linhas gerais de sua história.
Tudo começou na década de 1960, quando Maturana,
professor da Universidade do Chile, intuiu que a abordagem
convencional da biologia – que basicamente estuda os seres vivos a
partir de seus processos internos – podia ser fertilizada por outro
modo de ver. Tal abordagem os concebe em termos de suas interações
Um pouco de História com o ambiente, no qual, é claro, estão os
demais seres vivos. Em meados dos anos 60, Varela tornou-se aluno de
Maturana. A seguir, já também professor, continuou a trabalhar com
ele na Universidade do Chile. Juntos escreveram um primeiro livro:
De Máquinas y Seres Vivos: Uma Teoría de la Organización Biológica
Tempos depois, a instauração do regime militar no país, a partir de
1973, fez com que os dois autores fossem para o exterior, onde
continuaram a trabalhar separadamente.
Em 1980, de volta ao Chile, retomaram a
colaboração. Por essa época, a organização dos Estados Americanos (OEA)
buscava novas formas de abordar a comunicação entre as pessoas e o
modo como ocorre o conhecimento. Por intermédio de Rolf Behncke,
também chileno e ligado a essa instituição, Maturana e Varela
começaram a expor os resultados de suas pesquisas em uma série de
palestras, assistidas por pessoas de formação heterogênea. A
transcrição e edição dessas apresentações resultou num livro,
publicado em 1985 em edição não-comercial para a OEA. Essa obra
constitui, com algumas modificações, o que é hoje A Árvore do
Conhecimento. Desde a sua primeira edição destinada ao público – em
1987 –, ela jamais deixou de despertar atenção, gerando comentários,
resenhas, análises, pesquisas, outros livros. Tudo isso compõe hoje
uma ampla bibliografia, espalhada por áreas tão diversas como a
biologia, a administração de empresas, a filosofia, as ciências
sociais, a educação, as neurociências e a imunologia.
O centro da argumentação de Maturana e Varela é
constituído por duas vertentes. A primeira, como vimos, sustenta que
o conhecimento não se limita ao processamento de informações
oriundas de um mundo anterior à experiência do observador, o qual se
apropria dele para fragmentá-lo e explorá-lo. A segunda grande linha
afirma que os seres vivos são autônomos, isto é, autoprodutores –
capazes de produzir seus próprios componentes ao interagir com o
meio: vivem no conhecimento e conhecem no viver. A autonomia dos
seres vivos é uma alternativa à posição representacionista. Por
serem autônomos, eles não podem se limitar a receber passivamente
informações e comandos vindos de fora. Não “funcionam” unicamente
segundo instruções externas. Conclui-se, então, que se os
considerarmos isoladamente eles são autônomos. Mas se os virmos em
seu relacionamento com o meio, torna-se claro que dependem de
recursos externos para viver. Desse modo, autonomia e dependência
deixam de ser opostos inconciliáveis: uma complementa a outra. Uma
constrói a outra e por ela é construída, numa dinâmica circular.
Mas o que fazer para que o ser humano se veja
também como parte do mundo natural? Para tanto, é preciso que ele
observe a si mesmo enquanto observa o mundo. Esse passo é
fundamental, pois permite compreender que entre o observador e o
observado (entre o ser humano e o mundo) não há hierarquia nem
separação, mas sim cooperatividade na circularidade. Na verdade,
Maturana e Varela dão – não apenas com este livro, mas com o
conjunto de suas respectivas obras – uma contribuição relevante à
compreensão daquilo que talvez seja o maior problema epistemológico
de nossa cultura: a extrema dificuldade que temos de lidar com tudo
aquilo que é subjetivo e qualitativo. Mas temos outra limitação.
Para nós, não é fácil aceitar que o subjetivo e o qualitativo não se
propõem a ser superiores ao objetivo e ao quantitativo; e que não
pretendem descartá-los e substitui-los, mas sim manter com eles uma
relação complementar. Não entendemos que todas essas instâncias são
necessárias, e que é essencial que entre elas haja um relacionamento
transacional, uma circularidade produtiva. Tal situação tem
produzido, como foi dito, conseqüências éticas importantes. Parece
incrível, mas muitas pessoas (inclusive cientistas e filósofos)
imaginam que o trabalho científico deve afastar de suas preocupações
a subjetividade e a dimensão qualitativa – como se a ciência não
fosse um trabalho feito por seres humanos. Maturana e Varela
mostram, com abundância de exemplos e constatações, que a
subjetividade (tanto quanto a objetividade), e a qualidade (tanto
quanto a quantidade), são na verdade indispensáveis ao conhecimento
e, portanto, à ciência. Hoje, os dois autores seguem caminhos
diferentes. No entanto, a diversidade de suas linhas de trabalho
atuais não elimina um traço básico do ideário original: o que
sustenta que os seres vivos e o mundo estão interligados, de modo
que não podem ser compreendidos em separado.
Outro ponto de convergência é o que diz que, se o
conhecimento não é passivo – e sim construído pelo ser vivo em suas
interações com o mundo –, a postura de só levar em conta o que é
observado deixa de ter sentido. A transacionalidade entre o
observador e aquilo que ele observa, além de mostrar que um não é
separado do outro, torna indispensável a consideração da
subjetividade do primeiro, isto é, a compreensão de como ele
experiência o que observa. Maturana permanece no Chile, de onde sai
periodicamente para cursos, conferências e seminários em vários
países do mundo, inclusive o Brasil. Aprofunda seu pensamento sobre
a biologia do conhecimento e a respeito de sua concepção de
alteridade, que chama de biologia do amor. A transacionalidade da
biologia do conhecimento com a biologia do amor compõe a base do que
ele denomina de Matriz Biológica da Existência Humana.
Varela trabalha em Paris, onde desenvolve duas
linhas complementares de pesquisa. A primeira consta de estudos
experimentais sobre a integração neuronal durante os processos
cognitivos. A outra consiste em investigações sobre a consciência
humana Tais pesquisas proporcionam contribuições à sua escola de
estudos cognitivos – a ciência cognitiva enativa (teoria da atuação).
Em linhas gerais, essa teoria sustenta que é preciso levar em conta
não apenas a objetividade, mas também a subjetividade do observador,
que havia sido preterida pelos modelos teóricos representacionistas
de ciência cognitiva. Ou seja, pretende lançar uma ponte sobre o
fosso que separa a ciência (o universo da objetividade) da
experiência humana (o domínio da subjetividade).
Há anos que a Associação Palas Athena, por meio
de sua Editora, pretende lançar uma tradução d’A Árvore do
Conhecimento. Esse desejo sempre traduziu a certeza não apenas da
importância da obra, mas também da afinidade entre as idéias dos
cientistas chilenos e os princípios da Associação. Eis por que agora
a concretização do projeto é para todos nós um acontecimento da
maior importância, que queremos compartilhar.
- Humberto Mariotti
http://www.geocities.com/pluriversu/
Prefácio do livro "A Árvore do Conhecimento" de
Humberto Maturana e Francisco Varela editado no Brasil pela
Associação Palas Athena
Humberto Maturana |
Instituto de Formación Matriztica -
Chile
Francisco Varela |
http://www.enolagaia.com/Varela.html
Referências
1. ARENDT,
Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998, págs. 222,223.
2. MATURANA, Humberto R., VARELA,
Francisco J. Preface. The tree of knowledge: the
biological roots of human understanding. Boston e
Londres: Shambhala, 1998, págs. 11-13.
3. MATURANA, Humberto, VARELA, Francisco.
De máquinas y seres vivos: una teoria de la organizaciónbiológica.
Santiago: Editorial Universitária, 1973.
P.S. Este livro já estava traduzido e seu texto preparado
quando recebemos a notícia do falecimento de Francisco Varela. É com
pesar que registramos essa imensa perda. Que esta tradução se
incorpore às muitas homenagens que a sua memória merece e certamente
receberá. A elas somamos também a nossa gratidão, pelo privilégio de
ter convivido com seus ensinamentos e de poder continuar aprendendo
com eles.
(Este texto corresponde ao prefácio do livro A Árvore do
Conhecimento, de Humberto Maturana e Francisco Varela, publicado
pela Editora Palas Athena — São Paulo — em 2001, tradução de
Humberto Mariotti e Lia Diskin.)
HUMBERTO MARIOTTI Médico psicoterapeuta. Professor e
coordenador do Centro de Desenvolvimento de Lideranças da Business
School São Paulo (SP). Coordenador do Grupo de Estudos de Pensamento
Complexo Aplicado à Administração e aos Negócios da Business School
São Paulo.
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