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PÁTRIA |
7 |
O MINHO |
9 |
UM REINO MARAVILHOSO (trás-os-montes) |
27 |
O DOIRO |
45 |
O PORTO |
49 |
A BEIRA |
71 |
COIMBRA |
85 |
O LITORAL |
91 |
A ESTREMADURA |
95 |
AS BERLENGAS |
101 |
O RIBATEJO |
105 |
LISBOA |
111 |
O ALENTEJO |
119 |
O ALGARVE |
131 |
SAGRES |
137 |
PÁTRIA
SOUBE A DEFINIÇÃO NA MINHA INFÂNCIA.
MAS O TEMPO APAGOU
AS LINHAS QUE NO MAPA DA MEMÓRIA
A MESTRA PALMATÓRIA
DESENHOU.
HOJE
SEI APENAS GOSTAR
DUMA NESGA DE TERRA
DEBRUADA DE MAR.
A BEIRA
É de Augusto Gil esta quadra de saboroso desenho:
Porque fui dançar na boda,
Em que foi que te ofendi?
Andei sempre à roda, à roda,
Mas sempre à roda de ti.
E é invariavelmente destes versos que me lembro
quando penso na Beira.
Na verdade, todas as vezes que a visitei, olhei e
perscrutei, a ver se conseguia entendê-la, andei sempre à roda, à
roda, e sempre à roda da mesma força polarizadora: — a Estrela.
Como aquelas divindades ciosas, que não consentem
adoração a mais nenhum poder, só fascinado por ela o peregrino é
capaz de caminhar e perceber. Beira, quer já de si dizer beira da
serra. Mas não contente com essa marca etimológica que lhe submete
os domínios, do seu trono de majestade a esfinge de pedra exige a
atenção inteira. Alta, imensa, enigmática, a sua presença física é
logo uma obsessão. Mas junta-se à perturbante realidade uma certeza
ainda mais viva: a de todas as verdades locais emanarem dela. Há
rios na Beira? Descem da Estrela. Há queijo na Beira ? Faz-se na
Estrela. Há roupa na Beira? Tece-se na Estrela. Há vento na Beira?
Sopra-o a Estrela. Há energia eléctrica na Beira? Gera-se na
Estrela. Tudo se cria nela, tudo mergulha as raízes no seu largo e
materno seio. Ela comanda, bafeja, castiga e redime. Gelada e
carrancuda, cresta o que nasce sem a sua bênção; quente e
desanuviada, a vida à sua volta abrolha e floresce. O Marão separa
dois mundos — o minhoto e o transmontano. O Caldeirão, no pólo
oposto de Portugal, imita-o como pode. Mas a Estrela não divide:
concentra. O muro cresceu, alargou, e transformou-se na extensão que
teria de partilhar. O pouco que ficou desse abraço, são flancos,
abas, encostas e escorrências de aluvião.
Depois de se passar o arco romano da Bobadela, e
de se ter ouvido missa na capela de Lourosa (ungido, portanto,
Viriato trágico e triunfador do Lácio, e baptizado cristão nas
próprias barbas de Mafoma), quem quiser ter firmeza nos pés, só
encarrapitado na torre do Malhão Grande. Aí, na gávea de dois mil
metros de altura, além da certeza de estar agasalhado no próprio
tabernáculo da deusa, terá em redor, acolhido às asas da grande mãe
impassível, sujeito à sua lei e protegido pela sua presença, o mundo
que pretende. Mundo circunscrito ao tamanho da sombra tutelar,
alheio ao artifício das classificações. O que a árvore não cobre com
a sua rama, já lhe não pertence.
Jungida assim à razão centrípeta da granítica
matriz, a Beira ganha um sentido geográfico que não anda nos mapas
administrativos, mas se imprime na retina. Do corpo esguio e diverso
de Portugal destaca-se uma célula quase sem protoplasma, só
cromosomas, viva, a pulsar. E torna-se evidente que a própria
situação espacial desse como que embrionário coração da pátria a
fará dobrar-se pelos tempos fora à sua vontade tiranizante.
Cônscio dessa força telúrica, o homem beirão tira
dela todo o proveito possível. Marginal, por um condicionalismo
semelhante ao do pescador, tendo, portanto, um mundo inteiro seu
para sonhar e para se refugiar, cada passo, cada gesto, cada palavra
que diz, antes de mais, reflectem uma verdade já previamente
inscrita no Espinhaço do Cão.
Gil Vicente, que da realidade nacional sabia mais
do que os próprios donos da pátria, fala assim no Juiz da Beira:
Olhai vós bem que este sam eu
Homem de boa-ventura,
Empacho nunca me atura
E hei-de dizer o meu
Como qualquer criatura.
É claro que o poeta não estava a fazer geografia
humana quando divertia suas majestades, e por isso carregava para
onde o gracioso pedia. Mas o bom senso de Pêro Marques é uma
obra-prima de observação, e o primeiro verso da farsa é lapidar, e
define o nosso homem de cima a baixo.
Olhai vós bem que este sam eu!
Teimoso como um Sísifo voluntário, nenhuma mudez
original é capaz de o impedir de tornar audível o que esta afirmação
promete de tenacidade, concentração, serenidade e consciência de si.
Ou não estivesse a serra por detrás dos seus gestos! Medieval e
tosco na capela dos Ferreiros, em Oliveira do Hospital, ajoelhado e
renascido em Góis, fidalgo descobridor em Belmonte, viajante na
Covilhã, guerrilheiro em Midões, pastor e camponês em toda a parte,
ninguém o pode ignorar, porque ele desce a viseira, ergue as mãos,
iça a vela, caminha, aponta a carabina, levanta a enxada ou maneja o
cajado, e grita:
Olhai vós bem que este sam eu!
De cima da sua fraga primária, espelha-se nas
águas claras do Alva, do Mondego ou do Zêzere, três rios que lhe
sulcam a alma de frescura, lirismo e persistência, e vê-se de rosto
sereno, vagamente irónico e malicioso, pronto a ir governar a nação,
indiferente ao riso desconfiado do Minho, ao ar carrancudo de
Trás-os-Montes, à nostalgia alentejana e à reservada mudez algarvia.
Não é o brilho que o impõe, nem a honradez, nem a
inteligência, nem outras qualidades que o português não tenha. É uma
obstinação de caruncho, muda, modesta, inflexível, incapaz da
piedade de ceder ao seu próprio cansaço. Mas essa teimosia dá-lhe o
triunfo e a convicção de que só ele pode e deve conduzir os destinos
da pátria inteira. Sem o dizer, sem o afirmar, o beirão sente-se
dono de Portugal. Cingido até fisicamente às estremas da sua
courela, herda, contudo, o sentido absorvente e centrípeto da mãe. E
vá de inventar uma Beira transmontana, uma Beira alentejana, uma
Beira estremenha e uma Beira Litoral, enquanto não se lembra de
arquitectar uma Beira minhota e outra algarvia. Não há casal, dos
inúmeros que se espalham pela serra fora como pequenos rebanhos de
ovelhas, onde não tenha nascido um desses homens sem brilho,
apagados e humildes, que começam a tocar pífaro sobre uma lapa, e
que às duas por três estão no Terreiro do Paço de aguilhada na mão.
Mas o beirão mais castiço e simpático não é esse
ambicioso de poder e mando, quase sempre tão limitado
psicologicamente como os seus nativos horizontes. É o que fica
agarrado às berças, sepultado nos abismos do seu Piódão neolítico, e
que todos os anos sobe ao Colcorinho para cantar na Senhora das
Necessidades a canção do seu destino, íngreme como as encostas onde
cultiva a esperança. Toada que em nada lembra a que embala a Senhora
do Almurtão, ou a que desperta o S. Bento da Porta Aberta — a Virgem
insofrida das praganas da planície, e o Santo
entorpecido da longa hibernação da montanha. Não.
A Senhora das Necessidades ouve uma canção singela, nem muito quente
nem muito fria, moderada e discreta como a da fé do romeiro.
A' oliveira da serra
O vento leva a flor...
À parda e doméstica árvore do Horto da Agonia foi
o beirão buscar o símbolo de uma evasão que o transporte e lhe
respeite a inércia da raiz. A flor que vá, mas a tancha que fique.
Ó ai, ó linda, só a mim ninguém me leva,
Ó ai, ó linda, para o pé do meu amor!...
Sim, nem mesmo para junto da namorada. A natureza
humana é fraca, e o Demo tem artes de perder um homem de mil
maneiras. Por isso, o mais seguro é deixar-se estar, enquanto as
pétalas aladas levam o queixume de uma solidão que, sendo um
sofrimento da alma, é um gosto do corpo.
Amoroso dos valeiros que fabrica com seixos e
suor em cada barroca onde passa um fio de água, neles pega de estaca
e viceja. Mas o instinto de conservação pode mais do que as amarras
que o seguram. E, se a fome aperta, que remédio senão abalar! Em
colónias, que é o grande tipo de emigração beiroa, o irmão a chamar
o primo e o primo a chamar o amigo, não há sítio no mundo onde não
chegue o seu braço. Qualquer trabalho lhe serve. Os duma povoação
são varredores, os da povoação vizinha engraxadores, os da seguinte
barbeiros. Nada de aventuras sem garantia. O avô foi leiteiro na
Califórnia, o filho herda-lhe o ofício e transmite-o ao neto. Saem
já com o destino talhado. E ainda com a condição de terem a retirada
coberta. Essa prudência, aliada a um bairrismo descabelado, tornam o
beirão capaz de uma tal ubiquidade humana, que ao mesmo tempo que
moureja na América colabora activamente na construção do fontanário
da sua terra. Há juntas de melhoramentos duma aldeola que têm o
presidente e os sócios a milhares de quilómetros, noutro continente.
E que riquezas o chamam à consciência terrunha,
além da lição original e absorvente da serra ?
Quase nada. Algum remendo de centeio nas
quebradas, meia dúzia de belgas de milho nos nateiros dos rios,
quatro azeitonas, uns tonéis de vinho do Dão, a lã, o leite e a
carne duns centos de ovelhas, um rebanho de cabras, duas trutas e um
punhado de maçãs. Mas tudo isso o beirão multiplica com o seu amor.
Do caldo de couves faz um manjar, do azeite uma tibornada, da lã
churra um cobertor de papa, e da carne de cabra uma chanfana de
endoidecer. Faz estes milagres sem grande imaginação, pouco poeta e
pouco artista, mas hábil, engenhoso e prático. Duma agricultura sem
grandeza consegue uma abundância regrada, saborosa, com tigelada no
fim.
Também lhe não acena uma paisagem límpida e
aberta. A não ser nos boqueirões e nos píncaros da Estrela, onde se
desce ao inferno e se toca o céu, enrugada e morena, a natureza
beiroa só de quando em quando se espraia e alegra. Dir-se-ia que uma
limitação de tamanho e de posses limita também o arco-íris do
cenário. É quase preciso cair inesperadamente sobre certos recantos
para os surpreender na intimidade nua das suas horas felizes. Alguns
trechos do Alva, pedaços do vale do Zêzere, curvas do Mondego — são
imagens para não esquecer pela vida fora. E até caprichosos arranjos
de casario, aqui e além, se não conseguem o pitoresco e a graça de
bonitas aldeias escaroladas e gaiteiras do país, são duma
rusticidade tão tocante que comovem por isso.
Pouco sensível à estética, o beirão não cuida da
beleza dos seus burgos. Mas ela surge-lhe mesmo sem ele querer, como
os coelhinhos brancos nas leis mendelianas. E temos Avô, Coja e
Celorico, por exemplo.
Dessa pobreza artística que o marca, e da
ingratidão dos materiais de que dispõe — nas zonas de xisto
a inventiva pára automaticamente —, sofrem os monumentos as
consequências. Uma ou outra igrejinha românica, às
vezes de pedra rolada, como a de Arganil, a estátua orante ou
jacente de algum fidalgo de antanho, um pelourinho desgarrado,
um solar perdido nos confins duma quinta, uma sé gótica e
pesada na austeridade da Guarda, um pormenor sobrevivente da
grandeza passada de Viseu, é quase tudo. O que fica, e que o
inventário do bricabraquista pode ainda descobrir, não se impõe
como valor. É uma perna de santo aqui, uma cadeira sem palha
acolá, uma mísola mais adiante, cacos de presenças de excepção que
não resistiram ao embate da vulgaridade. A pobreza do solo, a
aspereza do clima e a configuração moral e mental do habitante não
consentiram nunca nem os vagares da criação gratuita, nem os ócios
da sua fruição. E é das coisas desconsoladas verificar que não
aparece nas feiras da região um barro colorido, uma canga entalhada,
um avental bordado. Tudo é neutro como as pedras da serra, a que é
preciso descobrir beleza na coesão dos átomos e na serenidade com
que assentam no chão.
Andei sempre à roda, à roda,
E sempre à roda de ti...
Não. Não se pode fugir ao magnetismo do íman que
tudo atrai e que tudo dispõe. E é justo. Se alguma coisa de
verdadeiramente sério e monumental possui a Beira, é justamente a
serra. Portugal tem outras mais belas e agrestes — o Gerês, por
exemplo. Outras com mais incorruptibilidade — o Marão, para não ir
mais longe. Outras mais luxuriantes — como Monchique. Mas nenhuma se
lhe compara na maneira larga como expande a respiração, no modo
aberto como desdobra o manto. Em qualquer das suas rivais a emoção
que se sente é sempre um espasmo. Um frémito rápido e agudo. Na
Estrela, porém, é um demorado fruir de sensações, feitas de
surpresas sucessivas. Há nela as três velhas dimensões necessárias a
um tamanho: comprimento, largura e altura. O Marão é um seio que
entumesceu num corpo; o Gerês um espinhaço que se fendeu ao meio;
Monchique um jardim suspenso. Mas a Estrela é uma expiração de pedra
que o quis ser sem literatura. As irmãs são mais cenários do que
realidade; ela é mais naturalidade do que artifício. Por isso apenas
se lhe apreende a grandeza tocando-a, como o tamanho de Gulliver só
se descobriu quando os anões lhe escalaram o arcabouço. A Borrageira
e o Pé do Cabril, do Gerês, as fragas da Ermida e a Pena Suar, do
Marão, vêem-se de muito longe, como bandeiras festivas nos mastros
das romarias. A Estrela, essa, guarda secretamente os ímpetos,
reflectindo-se ensimesmada e discreta no espelho das suas lagoas.
Somente a quem a passeia, a quem a namora duma paixão presente e
esforçada, abre o coração e os tesouros. Então, numa generosidade
milionária, mostra tudo. As suas Penhas Douradas, refulgentes já no
nome, os seus Cântaros rebeldes a qualquer aplanação, os seus vales
por onde deslizaram colossos de gelo, nos brancos tempos do
quaternário. Revela, sobretudo, recantos quase secretos de mulher.
Fontes duma pureza original, cascatas em que a água é um arco-íris
desfeito, e conchas de granito onde se pode beber a imagem. O tempo
demorou-se na solidão e no silêncio das suas lombas, e pôde
construir à vontade. Abrir ruas, esculpir estátuas, rasgar
gargantas, e até deixar desenhado o próprio perfil na curva de raio
infinito de cada recôncavo.
Perder-se por ela a cabo num dia de neve ou de
sol, quando as fragas são fofas ou há flores entre o cervum, é das
coisas inolvidáveis que podem acontecer a alguém. Para lá da certeza
dum refúgio amplo e seguro, onde não chega a poeira da pequenez nem
o ar corrompido da podridão, o peregrino esbarra a cada momento com
a figuração do homem que desejaria ser, simples, livre e feliz. Um
homem de pau e manta, a guardar um rebanho, — criatura ainda
impoluta do pecado original, para quem a vida não é nem suplício nem
degradação, mas um contínuo reencontro com a natureza, no que ela
tem de eternamente casto, exaltante e purificador.
- Miguel Torga
Excerto do livro PORTUGAL, 3º Edição - Coimbra
1967
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