"GANHARIAS"

 

índice

 

as sementeiras, 7

os corta-ramas, 63

as mondas, 75

ganadeiros, 91

os rompeiros, 109

as mulheres da ceifa, 125

um fogo, 151

os «ratinhos», 163

as toiradas à vara larga, 193

as debulhas, 213

as feiras, 233

os vinheiros, 259

vocabulário, 273

 

 


José Alves Capela e Silva

Imprensa Baroeth, Lisboa 1939

 

 

 

JOSÉ ALVES CAPELA E SILVA

 

Um Filho do Chão Sobral

 

José Alves Capela e Silva,

É o primeiro cidadão,

Que também escreveu livros,

E que nasceu no meu Chão,

 

Nasceu ali À Quintã,

Nos fins do século dezanove,

Na casa da senhora Laura,

Que já não era casa pobre...

 

Foram pais deste autor,

De uma prosa muito bela,

Maria Alves da Silva,

E José Luís da Capela.

 

Ele, Regente Agrícola,

Que viera do Goulinho,

Ela, era sobrinha,

Dos Velhos do Colcurinho.

 

Tirou o curso do pai,

E exerceu no Alentejo;

Dá-lo mais a conhecer,

Era meu grande desejo...

 

Fez o livro GANHARIAS,

E mais livros importantes,

Todos sobre o Alentejo,

Dos seus tempos já distantes.

 

E tem no "Museu do Traje"

Outras provas de cultura:

Figuras do Alentejo,

Com a sua assinatura!

 

Eu não sei se lá por Eivas,

Lhe mantêm a memória;

Eu aqui na sua terra

Registo a sua história!

 

(1) Museu Etnográfico de Lisboa (?).

 

- José Ramiro Moreira, 2006

 

 

 

 

 

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OS «RATINHOS»

 

A planíce vinha perdendo pouco a pouco o viço primaveril. De vida pouco mais resta do que as piscólas nos atalhos e aterceiros a badalar dolentemente os chocalhos e tenindo as guisadas, no último arranco para nova luta. Desaparece por fim, como todos os anos no mez de Maio, tudo o que representa poesia e arte, nessas manifestações de beleza perfumada e garrida, que deleitam os sentidos...

 

Os pães dos têzos de pouco chão já branqueiam, e nas covádas, os últimos reductos de verdura, fazem menção de travar misteriosas batalhas com o Sol.

 

No Monte do Carrascal, espécie de capital de um verdadeiro estado, dêsses estados que compõem o mundo da lavoura alentejana, assentou-se que eram precisos cincoenta homens para fazer a ceifa, e, porque os pães estavam chegados, nêsse mesmo dia o lavrador mandou carta ao manageiro, ordenando-lhe que se metêsse ao caminho.

 

Por êsse tempo já os ratinhos estão apalavrados, e, embora sugeitos à alteração do número, — segundo a grada da seara — ao menor sinal do manageiro, fazem a concentração, e partem.

 

Há pouco mais de vinte anos era raro vêr-se uma camarada no caminho de ferro. Vinha tudo a pé, formando grupos enormes, que engrossavam no caminho, com os seus carros típicos, e inseparáveis burros para a cópa e algum estropiado. Agora por via de regra, tiram grupo no caminho de ferro, ou alugam camionetas, e na estação do destino, se a lavoura é distante, são esperados pela carraria do lavrador.

 

Não medearam quatro dias entre a carta do lavrador, e a vinda dos ratinhos.

 

O velho Monte do Carrascal sentiu mais uma vez a mexida que só se houve quando chegam, e quando abalam os ratinhos, espécie de arraial fugidio, que dá vida aquele solitário aglomerado de casas, e grande centro de lavoura.

 

Tudo vem ás portas para vêr chegar os ratinhos,

 

— «Olha aquele velho! Benza-te Deus... aquilo tamem ceifará?... E aquele de chapéu á espanhola!? Parece um cigano?! Para que trarão cá aqueles rapazinhos?... coitadinhos... os molhos são maiores do que eles.»

 

A população da aldeia famíliarisada desde sempre com os ratinhos, não esconde, apesar disso, a curiosidade de os vêr. Um pouco por serem os anunciadores das colheitas, e principalmente para dar fé da su chegada, a família das povoações e dos Montes sente-se atraída para esses bandos de heróicos trabalhadores das Beiras, e do Pêgo, de indumentárias e costumes característicos que, apesar das investidas de tantos anos, não foi possível misturar com os alentejanos. É que o contacto permanente com a grandeza dos Montes, e das herdades, e da planície imensa, tornou as gentes do sul refratárias às influências exteriores. Vivem e morrem paredes meias com as grandes ucharias, e com as grandes fortunas, e com a grandeza sem igual dos montados e do horisonte. Por isso elas são de alma grande, e orgulhosas.

 

O ganhão do sul curva-se submisso perante o âmo desmedidamente rico, e não tem nenhuma espécie de admiração pelo charépe. Só a grandeza o domina. Por isso o orgulho que transparece das suas falas e do seu porte altaneiro são o reflexo dêsse sentimento ancestral.

 

— «Olha lá! Passas-te pela fôlha ? Que tal está?»

— «O triguito não está mau...»

— «Vis-te o gado de lãn?»

— «As badanas... se não lhe acode com pastáge vão-se-lhe abaixo».

— «E os bois?»

— «Os boisitos... lá vão traiteando... agóra ái lá uns que estão estranzilhádos... cumuns cabrões».

 

Toda essa população aventureira e miserável, que invade a planicie, — em contraste com os seus naturais em geral de temperamento sedentário, — á mingua de recursos nas suas terras, e que se sugeitam às mais baixas missões nas lavouras, são pela ganharias denominados pômbos.

 

A denominação vem da analogia que encontram entre essa pobre gente, que não aquece o lugar, ou que não pára em parte nenhuma, com os bandos, e garfos de suras, e pombos turcazes, que no tempo da bulêta infestam os montados, e que andam sempre de alevante à fama das soladas.

 

As gentes do norte são denominadas genericamente galegos, e é a consequência de as julga­rem constituídas por sêres inferiores, que se sugeitam aos mais árduos trabalhos, e ás mais humildes situações na vida, próprias de quem tem passado muito.

 

O ganhão alentejano tem a inveterada tendência de alcunhar e batizar tudo, e não há lavrador nenhum a quem êle não tenha posto um anexim, que substitue, quasi sempre nas suas conversas, o nome próprio. Êsses anexins são sempre diminuitivos, ou depreciativos.

 

Rato ou ratinho significa para a ganharia, uma coisa inferior, quási desprezível.

 

— «As searas vão de cabeça abaixo, e quando mal nos precatamos por ai dão chegada os ratos. Estão aqui estão cá os ratos. Já chegaram os ratos. Já cá temos os ratos. As ceifas estão a dar o fim, — ou estão de resto — porque os ratos já pegáram ábalar».

 

Na giria campezina o termo mais empregado, foi sempre o de ratos. E os ratos são esses sêres inferiores, que vivem do que podem apanhar, ou d'aquilo que lhe deixam.

 

Alheiados de tudo o que os rodeia, com o pensamento nas leiras, e na família que por lá deixaram, os ratinhos logo que chegam aos Montes iniciam os preparativos para a batalha da ceifa. Descarregam os burros, separam a cópa, tiram o ourêlo enrolado à lamina da foice, examinam por todos os lados os safões o peitoral e as braçadeiras de peles cabrias; outros, sentados no chão, desentrapam os pés arroxeados e sujos, com borrêgas das caminhadas.

 

O manageiro vai falar ao âmo. Essa audiência faz parte do programa daqueles estados, e, como dá ao manageiro o melhor ensejo de se agarrar ao logar, logo que chega vai cumprir a obrigação. Sabem muito bem levar a água ao seu moinho os manageiros.

 

Há manageiros que tomam conta de muitas camaradas, isto é, fazem a ceifa a muitas casas de lavoura, coisa muito séria para qualquer ratinho, porque tem de se entender com muitos lavradores.

 

O manageiro lá está com o lavrador,

 

— «Sêmos muitos senhor lavrador... a arranjar família... e o que vale... é a Espanha não querer foices das nossas… que as ceifas lá tinham mél.  Nunca vocemecê cá apilhou uma malta tão parelha como a d'este ano mas estão muito custosos... só eu e Deus... tômbos que dei para os arranjar! Trágo aí homens que ceifam por dois... assim Nosso Senhor nos salve… e são todos assim».

 

O lavrador que era filho da aíveca, isto é, tarimbeiro, acostumado a receber ratinhos desde que lhe nasceram os dentes, nem ouvia a cégarréga, tão concentrado estava a pensar na faina da colheita.

 

— Sim senhor. Está bem. Está muito bem. É então bôa gente... não? Vamos vêr no restolho... Vocêz ás vêzes trazem cada cataplasma?! Vá lá... vá lá com Deus... O cozinheiro já sabe... vou mandar dar-lhe um caspacho. E... como vamos de burros e rapazes?...»

— «Burros... com sua licença... quatro... e... rapazes... trago só sete...»

— «Diz vossemecê sete?!... Então já sei que são pelo menos catorze!

— «Mas são como homens... Não ha de ter que dizer... E as bestinhas... como vocemecê sabe... é para a cópa que não havemos de a trazer ás costas… Não tenha cuidado senhor lavrador... prendem-se... curtos... com que não façam mal...»

 

O lavrador passava pela fâma de ter muito bôjo, e era verdade... Algumas famas dos lavradores não são verdadeiras, mas o lavrador do Carrascal sabia de facto muito bem calcular as coisas, via longe, e sabia ser prudente, isto é tinha bôjo. Foi essa qualidade que tirou de cima do manageiro uma desanda de rabo à orelha, por ter trazido tantos burros e rapazes.

 

— «São capazes de tudo estes jesuítas, se me vou a destemperar com eles... temos tempo... deixa que não mas fica perdendo!» disse êle para si.

 

Com um gesto despediu o homem.

 

Na cozinha dos ganhões últimam-se os preparativos para dar de comer aos homens. Pouco depois, um grupo com o cozinheiro á frente, trazia com muita cautela, seguros com as duas mãos, oito alguidares quási cheios de água fria, temperada com azeite, alhos pizados, vinagre e sal, que colocam sobre uma grande banca de ganhões, num recanto do Monte. De um saco tiram pão em marrucates de duzentas gramas, feito há quatro dias, que migam em fatias muito delgadas, e vão lançando no caldo. Preparado assim o caspacho ou gaspacho, pega cada um em sua colher — que alguns trazem na fita ou cordão do chapéu — e á voz de vamos lá com Deus, pronunciada pelo manageiro, começa a caspachada.

 

A refeição decorre quasi sempre em silencio.

 

O cozinheiro retira os alguidares, e, como quem não quer a coisa, vai estar com o amo para receber ordens.

 

— «Comem como uns brutos! os almas do diabo... Por aquele andar bem pode vir mantimento! Só de pão abalaram vinte quilos... vinagre uns dois litros… e azeite... andou por meio quartilho ...»

— «Quando fizeste essa amassadura?»

— «No dia que foi a carta.»

— «Quatro dias... já deve estar bom... Tens que tratar de outra... Pão mole para essa gente é mau governo...»

 

O dia da chegada passam-no os ratinhos a dormitar, e em preparativos de ceifa, perfeitamente á margem da mexida do Monte, só se preocupando com êles á hora das refeições. Esquecidos, para ali ficam entregues a si próprios, dormindo nas abrigadas, que o tempo vai de calma.

 

De madrugada aparece o guarda e lá parte a malta dos ratinhos, com os inseparáveis burros, a caminho da ceifa. O guarda e o manageiro, fecham a coluna. Não tarda muito que não comece a ouvir-se uma algaviada em vários tons, desconcertante, tão típica, que mesmo muito longe, é conhecida.

 

O manageiro no desejo de captar as simpatias do guarda, seu superior hierarquico, quasi patrão, vai-lhe puchando conversa a propósito de tudo, mas os guardas de todos os ratinhos, orgulhosos da sua superioridade, nos primeiros dias tratam-nos com desprêso, e mal os escutam.

 

— «Oh! senhor guarda: as searinhas não estão más de todo, ao que parece...»

— «Bom isto?... Se vossemecê tivesse ás costas uma seara d’esta força... estava bem amanhado!... Vossemecê sabe lá o que são searas!»

 

E o manageiro encolhido fica calado. Mais adeante faz nova tentativa.

 

— «Quando entrei a vir ao alentejo, apareciam aquem além uns salpicos de burgo, e agora parece que essa prága tem carregado mais. Todos esses montados que atravessámos, estão que parecem queimados. Estou em crêr que não engordam um bácoro».

— «Não senhor! Vossemecê d'isso não entende... sempre assim foi desde que aí mundo. Isto é dos calibres dos anos!...»

 

E o pobre homem acaba por se calar. A malta lá vai adiantada sussurrando alegremente, sem se preocupar com os govêrnos.

 

Chegam enfim ao corte. Adaptados os safões, as bracadeiras, e o peitoral de peles, ou de lôna, e característico chapéu de palha, de foices na mão os homens aguardam serenos e humildemente as vozes de comando.

 

Impressiona êsse momento grandioso da vida rústica. Mal se vê ainda, e o suão de Maio, sêco, e môrno já aquela hora, toca ao de leve a seara, fazendo-a ramalhar brandamente, suavemente, como num  queixume. Os homens dão alguns passos. Animados e de cabeça erguida, olham em redor a medir com a vista aquela área imensa de seara, e resolutos, aguardam com ansiedade as ordens do govêrno.

 

Vai começar o tormento de quási dois mêses. Examinam mais uma vez a foice, certificam-se de que a curvatura em hélice não deixará que o bico lavre na terra, endireitam-na um pouco mais, quási afagam as foices como os guerreiros afagam as espadas e esperam.

 

— «Procurem-lhe a queda! Não viram ainda suão a bater d'aquele lado!? Temos que o trazêr a favôr!»

— «Ande lá, ó senhor guarda, que a bandeira não bate na cara!...»

— «Olha a novidade! Se não dizes outra como essa! Que não bate na cara sei eu, mas o estilo é este... e vocêzes bem o sabem!...»

 

Rodam um pouco para ficarem de costas ao vento. Os vultos distinguem-se agora melhor com o aclarar da manhã. Estão concentrados. Alguns mexem os beiços em contracções, como que falando sós. Rezam… Entreolham-se comovidos, a procurar conforto uns nos outros.

 

Os rapazes quebram aquele silencio impressionante.

 

— «Eh! familia... dátá...da! hoje vai estar um dia dos tais, para vós! Nem raça de marezia!»

 

O manageiro percorre com a vista a camarada e, de cabeça baixa, avança para o corte, onde alinha também. Momento de silencio. Ouvem-se distintamente os murmúrios da seara, tocada ao de leve pelo viração, e de longe vêm os sons alegres das chocalhadas.

 

O manageiro olha para o guarda. Fixa novamente os ceifeiros...

 

— «Vamos lá com Nossa Senhora e que seja em boa hora!» diz por fim em voz alta, para que todos oiçam,

 

Parece que uma rajada de vento forte agita repentinamente o ar, tal é o som produzido por aqueles quarenta homens no momento de se curvarem, dando a primeira ceifadela.

 

Durante alguns minutos não se ouve mais nada do que o ruído particular das foices a cortar. Os braços agitam-se continuamente, e as gavélas mal se distinguem antes de pousadas no negalho.

 

Os da atada correm como doidos, para não se afastarem das foices.

 

— «Cheguem-lhe mantulho rapazes! Que êle fóge da mão!» grita o guarda num vozeirão que sôa largo.

— «Vão lá dando uma pancada para o lado, e segurem-se com ele!»

«Vejam esse restolho! Acautelem-se com as espigas!»

 

As foices já brilham.

 

Os ratinhos avançam como máquina potente, sem um desfalecimento, e insensíveis ao Sol que os queima.

 

Começa o martírio da sêde. E os homens pedem em grita a água que chega mórna, e que é ingerida em quantidades inverosímeis, continuamente distribuída pelo aguadeiro.

 

O trabalho interrompido de meia hora para o almoço, é agora mais violento.

 

Respira-se mal, e o Sol é insuportável.

 

— «Oh! ponta esquerda! Então esse rábo fica aí para amostra? Guia-me esse córte!...  diabo!»

 

Cada voz de comando é uma chicotada. Alguns ceifeiros começam a fraquejar. Pedem água. Dobram-se para traz tanto quanto podem, para com essa curvatura diminuírem o sofrimento produzido pela demorada posição de ceifar.

 

— «Eh! rapazes!... já não sei onde tenho as costas!»

— «Ceifa d'arrecuas...   diabo!... para endireitares o macaco!»

 

O guarda, protegido pelas sombras do montado, lenço debaixo do chapeirão, com as pontas caídas sôbre a nuca, olha para o Sol, e consulta o relógio. São quási horas de jantar.

 

Manda juntar a copa que ficou onde almoçaram.

 

Dali a pouco o tardão escarranchado quási na cernelha de uma bêsta velha e coxa — que só serve para os ratos — com as duas azadas nas cangalhas, surge caminhando ao longo do corte para não se perder, para não andar salta-que-salta à procura da família da ceifa.

 

— «Vá de jantar!» grita o guarda.

 

Os homens soltam imediatamente. Estão extenuados.

 

O manageiro e o guarda dispõem os alguidares em volta das azadas, ainda com as largas tampas de cortiça, de canudo de cana ao centro, para o comer respirar e, sem outro utensílio, despejando a própria vasilha, distribuem a comida, primeiro o caldo, depois o entulho. Nos dias de carne põem esta sôbre as tampas das azadas, e é servida no fim.

 

— «O jantarito trás bôa cara... mas a bóia... como vocemecêz cá dizem... ó senhor guarda.'...»

— Não vêz que o âno é ruim.,. diabo!»

— «Seja louvado Nosso Senhor Jesus Cristo!» diz o manageiro quando a camarada já envolve os alguidares de colheres em riste.

 

As refeições são sempre acompanhadas de alegres conversas, mas logo que terminam, os homens separam-se, cada um para seu lado, á procura de sombras, ou para empinar molhos, onde não há arvoredo, para passarem a sésta.

 

É um descanço fugidio, porque a ceifa de ratinhos não é trabalho  para  entreter.  Desde que chegam até ao dia da abalada, sentem cair sobre eles o peso despótico do mundo que os rodeia. É o pão que se está a passar; o gado do acarrêto que não tem pastagem; o agostadouro para os porcos; emfim um sem número de razões, que os chicoteiam a toda-a-hora, para que não fraquegem na luta.

 

Quando acabam as sementes brancas, e começam com o trigo, o furor da batalha redobra, e então é impressionante ver uma camarada de ratinhos, vestidos de burel, nesses descampados, um dia inteiro debaixo do Sol ardente, exaustos, em ritmo alucinado, a entrar pelos mares de pão, na ancia de acabarem com aquele infindável martírio.

 

Alguns por cá ficam, outros vão parar ao hospital, e quantos arrasados para toda a vida, não voltam mais!

 

Pobres ratinhos!

 

No dia do acabamento parece que toda a camarada endoidece. Muitos rezam fervorosamente, recolhidamente, foice no braço, chapéu a esconder as mãos postas, separados da despótica campina, com o espírito lá muito longe, nas suas leiras, na sua casinha humilde, na mulher e nos filhos, pensando na alegria simples e boa, vivida no acanhado horisonte da sua aldeia, a enleá-los, a prendê-los, para que não fujam para o enganoso mundo dos fortes, para o mundo das planícies!...

 

— «Eh! rapazes!... olhem que o rabo é o mais custôso de esfolar!...

Cheguem-se a êle, rapazes!... que já faltou mais!»

 

Os mais novos quando dão a última ceifadela, como que desvairados, agitam a foice no ar, dançam agarrados aos pares, outros sapateiam cantando modas remexidas.

 

Sempre a exteriorisar alegria, juntam o que lhes pertence, e, espalhados nas mais cómicas atitudes, procedem ali mesmo, à vista de todos, à mudança de roupa.

 

Chegam ao Monte vestidos de lavado, prontos para a marcha, que nem parecem os mesmos.

 

O manageiro adianta-se e vai estar com o lavrador,

 

— «Quere fazer as contas?...»

— «Saiba vossa senhoria que sim».

— «Ha algum desconto a fazer?»

— «Parece-me que não».

— «Então quanto é a sua conta?»

— «Ora... senhor lavrador... a conta está bem de fazer...»

— «Mas, diga la!»

— «Então... cincoenta homens... a trezentos escudos... são quinze contos».

— «Está claro!.,. Cincoenta homens!»

— «Eu falei-lhes por isso... e bem vê, isto não ê de hoje, nem de ontem… senhor lavrador... ha o ponta direita... o ponta esquerda...  e eu... e meia duzia de homens que não veem cá atidos ao preço geral...»

— «Está bem homem... está multo bem !... Cincoenta homens…  quem tem a culpa não é vossemecê!... Quinze contos! Aqui está. Chame lá dois homens para contarem o dinheiro.»

— «Está certo?»

— «Está.»

«Bem. Vossemecê, para o ano não conta com a minha casa.»

«Sim senhor... senhor lavrador... deve falar a outro... que lhe faça o serviço mais à sua vontade...» disse o manageiro com ar de tristeza.

 

Despedem-se.

 

Cá fora, parecendo que receiam a sua fuga, são os três das contas aguardados com ansiedade. Não tiram os olhos da porta do Monte.

 

Quando, enfim apareceram, todos respiram fundo.

 

— «Vamos a contas, rapazes... venham d'ai» disse o manageiro em atitude de receio, como se fosse repartir um roubo.

— «Onde está aí o escrevente? Escreve lá: trinta e seis homens a trezentos escudos...»

 

O escrevente repetiu a frase.

 

— «Quanto te dá?»

— «Déz contos e oitocentos.»

— «Põe lá.»

— «Agora... ponta direita... e mais o ponta esquerda... quatrocentos a cada um... põe lá mais oitocentos escudos...»

— «Doze rapazes a cem escudos... quanto é?»

— «Um conto e duzentos.»

— «Isso. Deve sêr isso... põe lá.»

«Em quanto soma a conta?»

«Doze contos e oitocentos.»

— «Não ha engano ? Vê lá bem!»

— «Está certa.»

— «Bem. Na primeira terra por onde passar-mos troca-se o dinheiro e paga-se.»

 

A camarada acabadas as contas, espalha-se, grita e barafusta numa algaraviada de feira. A mestrança destaca-se a gesticular. Todas as camaradas têm mestrança. Há ali homens de todos os ofícios que o manageiro apanha na rede das suas habilidades. Discutem a abalada. Uns querem ir d'acavalo no comboio, outros a pé, Vencem estes. A gente nova com crença em baile, rodeia o do harmónio que, de cabeça tombada para o instrumento, marcando compasso à fôrça de esgares e tregeitos, faz roncar o fole, de onde sai um ordinário exquisito, no costumado tom de sol.

 

— «Ou hoje ou no tal dia que nós sabemos... na véspera da abalada... Oh! parente!» disse entusiasmado, um rapaz  já  zagalote, de pifaro de sabugueiro na mão.

— «Nem me fales n'isso!... raio! Que se as sarugas e a unha gata me não levassem as cabeças dos dedos...»

— «Eh! gente! Olháide que temos de chegar à aldeia de Santa Eulalia antes do pardejár, pr'amôr das contas!»

— «Estavamos à sua espéra!»

— «Então vá. Vamos lá com Nossa Senhora e mais com o Anjo da Guarda!»

 

Os braços do tocador n'um gesto sacudido, alargam-se, fazendo estender o fóle já a meter vento, ouvindo-se ao mesmo tempo um ronco fundo, prolongado, uma verdadeira guerra de sons.

 

Rompe então a moda. A primeira nota confunde-se com os primeiros passos para a caminhada. A camarada delira. De lenços bordados ao pescoço, recordação das namoradas, paus ao ombro, de onde pendem as mantas e mais copa, foices e cabaças a tiracolo, lá vão êles agora envoltos em pó da côr do fumo, como aves migratórias outra vez na sua rota!

 

Os ratinhos!

 

Já se não ouvem os acordes do harmónio, mas no ar lá ao longe, lobriga-se ainda uma leve esteira de pó, a esbater-se no fundo amarelado dos restolhos e do verde moribundo dos montados.

 

 

 

 

 

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