OS «RATINHOS»
A planíce vinha perdendo pouco a pouco o viço primaveril. De vida pouco
mais resta do que as piscólas nos atalhos e aterceiros a
badalar dolentemente os chocalhos e tenindo as guisadas, no último
arranco para nova luta. Desaparece por fim, como todos os anos no mez de
Maio, tudo o que representa poesia e arte, nessas manifestações de
beleza perfumada e garrida, que deleitam os sentidos...
Os pães dos têzos de pouco chão já branqueiam, e nas covádas, os últimos
reductos de verdura, fazem menção de travar misteriosas batalhas com o
Sol.
No Monte do Carrascal, espécie de capital de um verdadeiro estado, dêsses
estados que compõem o mundo da lavoura alentejana, assentou-se que eram
precisos cincoenta homens para fazer a ceifa, e, porque os pães estavam
chegados, nêsse mesmo dia o lavrador mandou carta ao manageiro,
ordenando-lhe que se metêsse ao caminho.
Por êsse tempo já os ratinhos estão apalavrados, e, embora sugeitos
à alteração do número, — segundo a grada da seara — ao menor sinal do
manageiro, fazem a concentração, e partem.
Há pouco mais de vinte anos era raro vêr-se uma camarada no caminho
de ferro. Vinha tudo a pé, formando grupos enormes, que engrossavam no
caminho, com os seus carros típicos, e inseparáveis burros para a
cópa e algum estropiado. Agora por via de regra, tiram grupo
no caminho de ferro, ou alugam camionetas, e na estação do destino, se a
lavoura é distante, são esperados pela carraria do lavrador.
Não medearam quatro dias entre a carta do lavrador, e a vinda dos
ratinhos.
O velho Monte do Carrascal sentiu mais uma vez a mexida que só se houve
quando chegam, e quando abalam os ratinhos, espécie de arraial fugidio,
que dá vida aquele solitário aglomerado de casas, e grande centro de
lavoura.
Tudo vem ás portas para vêr chegar os ratinhos,
— «Olha aquele velho!
Benza-te Deus... aquilo tamem ceifará?... E aquele de chapéu á
espanhola!? Parece um cigano?! Para que trarão cá aqueles
rapazinhos?... coitadinhos... os molhos são maiores do que eles.»
A população da aldeia famíliarisada desde sempre com os ratinhos, não
esconde, apesar disso, a curiosidade de os vêr. Um pouco por serem os
anunciadores das colheitas, e principalmente para dar fé da su
chegada, a família das povoações e dos Montes sente-se atraída
para esses bandos de heróicos trabalhadores das Beiras, e do Pêgo,
de indumentárias e costumes característicos que, apesar das investidas
de tantos anos, não foi possível misturar com os alentejanos. É que o
contacto permanente com a grandeza dos Montes, e das herdades, e da
planície imensa, tornou as gentes do sul refratárias às influências
exteriores. Vivem e morrem paredes meias com as grandes ucharias,
e com as grandes fortunas, e com a grandeza sem igual dos montados e do horisonte. Por isso elas são de alma grande, e orgulhosas.
O ganhão do sul curva-se submisso perante o âmo desmedidamente rico, e não
tem nenhuma espécie de admiração pelo charépe. Só a grandeza o
domina. Por isso o orgulho que transparece das suas falas e do seu porte
altaneiro são o reflexo dêsse sentimento ancestral.
— «Olha lá! Passas-te
pela fôlha ? Que tal está?»
— «O triguito não está
mau...»
— «Vis-te o gado de lãn?»
— «As badanas... se não
lhe acode com pastáge vão-se-lhe abaixo».
— «E
os bois?»
— «Os boisitos... lá vão
traiteando... agóra ái lá uns que estão estranzilhádos... cumuns
cabrões».
Toda essa população aventureira e miserável, que invade a planicie, — em
contraste com os seus naturais em geral de temperamento sedentário, — á
mingua de recursos nas suas terras, e que se sugeitam às mais baixas
missões nas lavouras, são pela ganharias denominados pômbos.
A denominação vem da analogia que encontram entre essa pobre gente, que
não aquece o lugar, ou que não pára em parte nenhuma, com
os bandos, e garfos de suras, e pombos turcazes, que no
tempo da bulêta infestam os montados, e que andam sempre de alevante
à fama das soladas.
As gentes do norte são denominadas genericamente galegos, e é a
consequência de as julgarem constituídas por sêres inferiores, que se
sugeitam aos mais árduos trabalhos, e ás mais humildes situações na
vida, próprias de quem tem passado muito.
O ganhão alentejano tem a inveterada tendência de alcunhar e batizar tudo,
e não há lavrador nenhum a quem êle não tenha posto um anexim, que
substitue, quasi sempre nas suas conversas, o nome próprio. Êsses
anexins são sempre diminuitivos, ou depreciativos.
Rato
ou ratinho significa para a ganharia, uma coisa inferior, quási
desprezível.
— «As searas vão de
cabeça abaixo, e quando mal nos precatamos por ai dão chegada os ratos.
Estão aqui estão cá os ratos. Já chegaram os ratos. Já cá temos os
ratos. As ceifas estão a dar o fim, — ou estão de resto — porque os
ratos já pegáram ábalar».
Na giria campezina o termo mais empregado, foi sempre o de ratos. E
os ratos são esses sêres inferiores, que vivem do que podem apanhar, ou d'aquilo que lhe deixam.
Alheiados de tudo o que os rodeia, com o pensamento nas leiras, e na
família que por lá deixaram, os ratinhos logo que chegam aos Montes
iniciam os preparativos para a batalha da ceifa. Descarregam os burros,
separam a cópa, tiram o ourêlo enrolado à lamina da foice,
examinam por todos os lados os safões o peitoral e as
braçadeiras de peles cabrias; outros, sentados no chão,
desentrapam os pés arroxeados e sujos, com borrêgas das
caminhadas.
O manageiro vai falar ao âmo. Essa audiência faz parte do programa
daqueles estados, e, como dá ao manageiro o melhor ensejo de se agarrar
ao logar, logo que chega vai cumprir a obrigação. Sabem muito bem levar
a água ao seu moinho os manageiros.
Há manageiros que tomam conta de muitas camaradas, isto é, fazem a ceifa a
muitas casas de lavoura, coisa muito séria para qualquer ratinho, porque
tem de se entender com muitos lavradores.
O manageiro lá está com o lavrador,
— «Sêmos muitos senhor
lavrador... a arranjar família... e o que vale... é a Espanha não querer
foices das nossas… que as ceifas lá tinham mél. Nunca vocemecê cá
apilhou uma malta tão parelha como a d'este ano mas estão muito
custosos... só eu e Deus... tômbos que dei para os arranjar! Trágo aí
homens que ceifam por dois... assim Nosso Senhor nos salve… e são todos
assim».
O lavrador que era filho da aíveca, isto é, tarimbeiro, acostumado
a receber ratinhos desde que lhe nasceram os dentes, nem ouvia a
cégarréga, tão concentrado estava a pensar na faina da colheita.
— Sim senhor. Está bem.
Está muito bem. É então bôa gente... não? Vamos vêr no restolho... Vocêz
ás vêzes trazem cada cataplasma?! Vá lá... vá lá com Deus... O
cozinheiro já sabe... vou mandar dar-lhe um caspacho. E... como vamos de
burros e rapazes?...»
— «Burros... com sua licença... quatro... e... rapazes... trago só
sete...»
— «Diz vossemecê
sete?!... Então já sei que são pelo menos catorze!
— «Mas são como
homens... Não ha de ter que dizer... E as bestinhas... como vocemecê
sabe... é para a cópa que não havemos de a trazer ás costas… Não tenha
cuidado senhor lavrador... prendem-se... curtos... com que não façam
mal...»
O lavrador passava pela fâma de ter muito bôjo, e era verdade...
Algumas famas dos lavradores não são verdadeiras, mas o lavrador do
Carrascal sabia de facto muito bem calcular as coisas, via longe, e
sabia ser prudente, isto é tinha bôjo. Foi essa qualidade que tirou de
cima do manageiro uma desanda de rabo à orelha, por ter trazido
tantos burros e rapazes.
— «São capazes de tudo
estes jesuítas, se me vou a destemperar com eles... temos tempo... deixa
que não mas fica perdendo!» disse êle para si.
Com um gesto despediu o homem.
Na cozinha dos ganhões últimam-se os preparativos para dar de comer aos
homens. Pouco depois, um grupo com o cozinheiro á frente, trazia com
muita cautela, seguros com as duas mãos, oito alguidares quási cheios de
água fria, temperada com azeite, alhos pizados, vinagre e sal, que
colocam sobre uma grande banca de ganhões, num recanto do Monte.
De um saco tiram pão em marrucates de duzentas gramas, feito há
quatro dias, que migam em fatias muito delgadas, e vão lançando no
caldo. Preparado assim o caspacho ou
gaspacho, pega cada um em sua colher — que alguns
trazem na fita ou cordão do chapéu — e á voz de vamos lá com Deus,
pronunciada pelo manageiro, começa a caspachada.
A refeição decorre quasi sempre em
silencio.
O cozinheiro retira os alguidares, e,
como quem não quer a coisa, vai estar com o amo para receber ordens.
— «Comem como uns brutos! os almas do
diabo... Por aquele andar bem pode vir mantimento! Só de pão abalaram
vinte quilos... vinagre uns dois litros… e azeite... andou por
meio quartilho ...»
— «Quando fizeste essa amassadura?»
— «No dia
que foi a carta.»
— «Quatro dias... já deve estar bom...
Tens que tratar de outra... Pão mole para essa gente é mau governo...»
O dia da chegada passam-no os ratinhos a
dormitar, e em preparativos de ceifa, perfeitamente á margem da mexida
do Monte, só se preocupando com êles á hora das refeições. Esquecidos, para ali ficam entregues a si próprios,
dormindo nas abrigadas, que o tempo vai de calma.
De madrugada aparece o guarda e lá parte a
malta dos ratinhos, com os inseparáveis burros, a caminho da ceifa. O
guarda e o manageiro, fecham a coluna. Não tarda muito que não comece a
ouvir-se uma algaviada em vários tons, desconcertante, tão típica, que
mesmo muito longe, é conhecida.
O manageiro no desejo de captar as
simpatias do guarda, seu superior hierarquico, quasi patrão, vai-lhe
puchando conversa a propósito de tudo, mas os guardas de todos os
ratinhos, orgulhosos da sua superioridade, nos primeiros dias tratam-nos
com desprêso, e mal os escutam.
— «Oh!
senhor guarda: as searinhas não estão más de todo, ao que parece...»
— «Bom
isto?... Se vossemecê tivesse ás costas uma seara d’esta força...
estava bem amanhado!... Vossemecê sabe lá o que são searas!»
E o manageiro encolhido fica calado. Mais adeante faz nova
tentativa.
— «Quando entrei a vir ao alentejo,
apareciam aquem além uns salpicos de burgo, e agora parece que essa
prága tem carregado mais. Todos esses montados que atravessámos, estão
que parecem queimados. Estou em crêr que não engordam um bácoro».
— «Não senhor! Vossemecê d'isso não
entende... sempre assim foi desde que aí mundo. Isto é dos calibres dos
anos!...»
E o pobre homem acaba por se calar. A malta
lá vai adiantada sussurrando alegremente, sem se preocupar com os
govêrnos.
Chegam enfim ao corte. Adaptados os
safões, as bracadeiras, e o peitoral de peles, ou de lôna, e
característico chapéu de palha, de foices na mão os homens aguardam
serenos e humildemente as vozes de comando.
Impressiona êsse momento grandioso da vida
rústica. Mal se vê ainda, e o suão de Maio, sêco, e môrno já
aquela hora, toca ao de leve a seara, fazendo-a ramalhar brandamente,
suavemente, como num queixume. Os homens dão alguns passos. Animados e
de cabeça erguida, olham em redor a medir com a vista aquela área imensa
de seara, e resolutos, aguardam com ansiedade as ordens do govêrno.
Vai começar o tormento de quási dois mêses.
Examinam mais uma vez a foice, certificam-se de que a curvatura em
hélice não deixará que o bico lavre na terra, endireitam-na um
pouco mais, quási afagam as foices como os guerreiros afagam as espadas
e esperam.
— «Procurem-lhe a queda! Não viram ainda
suão a bater d'aquele lado!? Temos que o trazêr a favôr!»
— «Ande lá, ó senhor guarda, que a
bandeira não bate na cara!...»
— «Olha a
novidade! Se não dizes outra como essa! Que não bate na cara sei eu, mas
o estilo é este... e vocêzes bem o sabem!...»
Rodam um pouco para ficarem de costas ao
vento. Os vultos distinguem-se agora melhor com o aclarar da manhã.
Estão concentrados. Alguns mexem os beiços em contracções, como que
falando sós. Rezam… Entreolham-se comovidos, a procurar conforto uns nos
outros.
Os rapazes quebram aquele silencio
impressionante.
— «Eh! familia... dátá...da! hoje vai
estar um dia dos tais, para vós! Nem raça de marezia!»
O manageiro percorre com a vista a camarada
e, de cabeça baixa, avança para o corte, onde alinha também. Momento de
silencio. Ouvem-se distintamente os murmúrios da seara, tocada ao de
leve pelo viração, e de longe vêm os sons alegres das chocalhadas.
O manageiro olha para o guarda. Fixa
novamente os ceifeiros...
— «Vamos lá com Nossa Senhora e que seja
em boa hora!» diz por fim em voz alta, para que todos oiçam,
Parece que uma rajada de vento forte agita
repentinamente o ar, tal é o som produzido por aqueles quarenta homens
no momento de se curvarem, dando a primeira ceifadela.
Durante alguns minutos não se ouve mais
nada do que o ruído particular das foices a cortar. Os braços agitam-se
continuamente, e as gavélas mal se distinguem antes de pousadas
no negalho.
Os da atada correm como doidos, para
não se afastarem das foices.
—
«Cheguem-lhe mantulho rapazes! Que êle fóge da mão!»
grita o guarda num vozeirão que sôa largo.
— «Vão lá dando uma pancada para o lado,
e segurem-se com ele!»
—
«Vejam
esse restolho! Acautelem-se com as espigas!»
As foices já brilham.
Os ratinhos avançam como máquina potente,
sem um desfalecimento, e insensíveis ao Sol que os queima.
Começa o martírio da sêde. E os homens pedem em grita a água
que chega mórna, e que é ingerida em quantidades inverosímeis,
continuamente distribuída pelo aguadeiro.
O trabalho interrompido de meia hora para o
almoço, é agora mais violento.
Respira-se mal, e o Sol é insuportável.
— «Oh! ponta esquerda! Então esse rábo
fica aí para amostra? Guia-me esse córte!... diabo!»
Cada voz de comando é uma chicotada.
Alguns ceifeiros começam a fraquejar. Pedem água. Dobram-se para traz
tanto quanto podem, para com essa curvatura diminuírem o sofrimento
produzido pela demorada posição de ceifar.
— «Eh! rapazes!... já não sei onde tenho
as costas!»
— «Ceifa
d'arrecuas... diabo!... para endireitares o macaco!»
O guarda, protegido pelas sombras do
montado, lenço debaixo do chapeirão, com as pontas caídas sôbre a nuca,
olha para o Sol, e consulta o relógio. São quási horas de jantar.
Manda juntar a copa que ficou onde
almoçaram.
Dali a pouco o tardão escarranchado
quási na cernelha de uma bêsta velha e coxa — que só
serve para os ratos —
com as duas azadas nas cangalhas, surge caminhando ao longo do corte para não se perder, para não andar salta-que-salta à
procura da família da ceifa.
—
«Vá de jantar!»
grita o guarda.
Os homens soltam imediatamente. Estão extenuados.
O manageiro e o guarda dispõem os alguidares em volta das azadas, ainda
com as largas tampas de cortiça, de canudo de cana ao centro, para o
comer respirar e, sem outro utensílio, despejando a própria
vasilha, distribuem a comida, primeiro o caldo, depois o entulho.
Nos dias de carne põem esta sôbre as tampas das azadas, e é servida no
fim.
— «O jantarito trás bôa
cara... mas a bóia... como vocemecêz cá dizem... ó senhor guarda.'...»
— Não vêz que o âno é
ruim.,. diabo!»
—
«Seja louvado Nosso
Senhor Jesus Cristo!»
diz o manageiro quando a camarada já envolve os alguidares de colheres
em riste.
As refeições são sempre acompanhadas de
alegres
conversas, mas logo que terminam, os homens separam-se, cada um para seu
lado, á procura de sombras, ou para empinar molhos, onde não há
arvoredo, para passarem a sésta.
É um descanço fugidio, porque a ceifa de
ratinhos não é trabalho para entreter. Desde que chegam até ao dia
da abalada, sentem cair sobre eles o peso despótico do mundo que os
rodeia. É o pão que se está a passar; o gado do acarrêto que não
tem pastagem; o agostadouro para os porcos; emfim um sem número
de razões, que os chicoteiam a toda-a-hora, para que não fraquegem na
luta.
Quando acabam as sementes brancas, e
começam com o trigo, o furor da batalha redobra, e então é
impressionante ver uma camarada de ratinhos, vestidos de burel, nesses
descampados, um dia inteiro debaixo do Sol ardente, exaustos, em ritmo
alucinado, a entrar pelos mares de pão, na ancia de acabarem com aquele
infindável martírio.
Alguns por cá ficam, outros vão parar ao
hospital, e quantos arrasados para toda a vida, não voltam mais!
Pobres ratinhos!
No dia do acabamento parece que toda a
camarada endoidece. Muitos rezam fervorosamente, recolhidamente, foice
no braço, chapéu a esconder as mãos postas, separados da despótica
campina, com o espírito lá muito longe, nas suas leiras, na sua casinha
humilde, na mulher e nos filhos, pensando na alegria simples e boa,
vivida no acanhado horisonte da sua aldeia, a enleá-los, a prendê-los,
para que não fujam para o enganoso mundo dos fortes, para o mundo das
planícies!...
— «Eh! rapazes!... olhem que o rabo é o
mais custôso de esfolar!...
Cheguem-se a êle, rapazes!... que já
faltou mais!»
Os mais novos quando dão a última ceifadela,
como que desvairados, agitam a foice no ar, dançam agarrados aos pares,
outros sapateiam cantando modas remexidas.
Sempre a exteriorisar alegria, juntam o que
lhes pertence, e, espalhados nas mais cómicas atitudes, procedem ali mesmo, à vista de todos, à
mudança de roupa.
Chegam ao Monte vestidos de lavado,
prontos para a marcha, que nem parecem os mesmos.
O manageiro adianta-se e vai estar com o
lavrador,
— «Quere
fazer as contas?...»
— «Saiba
vossa senhoria que sim».
— «Ha
algum desconto a fazer?»
—
«Parece-me que não».
— «Então
quanto é a sua conta?»
— «Ora...
senhor lavrador... a conta está bem de fazer...»
— «Mas,
diga la!»
—
«Então... cincoenta homens... a trezentos escudos... são quinze contos».
— «Está
claro!.,. Cincoenta homens!»
— «Eu
falei-lhes por isso... e bem vê, isto não ê de hoje, nem de ontem…
senhor lavrador... ha o ponta direita... o ponta esquerda... e eu... e
meia duzia de homens que não veem cá atidos ao preço geral...»
— «Está bem homem...
está multo bem !... Cincoenta homens… quem tem a culpa não é
vossemecê!... Quinze contos! Aqui está. Chame lá dois homens para
contarem o dinheiro.»
— «Está certo?»
— «Está.»
«Bem. Vossemecê, para o ano não conta com a minha casa.»
«Sim senhor... senhor lavrador... deve falar a outro... que lhe faça o
serviço mais à sua vontade...» disse o manageiro com ar de tristeza.
Despedem-se.
Cá fora, parecendo que receiam a sua fuga, são os três das contas
aguardados com ansiedade. Não tiram os olhos da porta do Monte.
Quando, enfim apareceram, todos respiram fundo.
— «Vamos a contas, rapazes... venham d'ai» disse o manageiro em atitude de
receio, como se fosse repartir um roubo.
— «Onde está aí o
escrevente? Escreve lá:
trinta e seis homens
a trezentos escudos...»
O escrevente repetiu a frase.
— «Quanto te dá?»
— «Déz
contos e oitocentos.»
— «Põe
lá.»
— «Agora... ponta direita... e mais o ponta esquerda... quatrocentos a
cada um... põe lá mais oitocentos escudos...»
— «Doze rapazes a cem escudos... quanto
é?»
— «Um conto e duzentos.»
— «Isso. Deve sêr isso... põe
lá.»
— «Em quanto soma a conta?»
— «Doze contos e oitocentos.»
— «Não ha engano ? Vê lá bem!»
— «Está
certa.»
— «Bem. Na primeira terra por onde
passar-mos troca-se o dinheiro e paga-se.»
A camarada acabadas as contas, espalha-se,
grita e barafusta numa algaraviada de feira. A mestrança
destaca-se a gesticular. Todas as camaradas têm mestrança. Há ali
homens de todos os ofícios que o manageiro apanha na rede das suas
habilidades. Discutem a abalada. Uns querem ir d'acavalo no
comboio, outros a pé, Vencem estes. A gente nova com crença em
baile, rodeia o do harmónio que, de cabeça tombada para o instrumento,
marcando compasso à fôrça de esgares e tregeitos, faz roncar o fole, de
onde sai um ordinário exquisito, no costumado tom de sol.
— «Ou
hoje ou no tal dia que nós sabemos... na véspera da abalada...
Oh! parente!» disse entusiasmado, um rapaz já zagalote, de pifaro
de sabugueiro na mão.
— «Nem me fales n'isso!... raio!
Que se as sarugas e a unha gata me não levassem as cabeças dos dedos...»
— «Eh!
gente! Olháide que temos de chegar à aldeia de Santa Eulalia antes do
pardejár, pr'amôr das contas!»
— «Estavamos
à sua espéra!»
—
«Então vá. Vamos lá com Nossa Senhora e mais com o Anjo da Guarda!»
Os braços do tocador n'um gesto sacudido,
alargam-se, fazendo estender o fóle já a meter vento, ouvindo-se
ao mesmo tempo um ronco fundo, prolongado, uma verdadeira guerra de
sons.
Rompe então a moda. A primeira nota
confunde-se com os primeiros passos para a caminhada. A camarada
delira. De lenços bordados ao pescoço, recordação das namoradas, paus ao
ombro, de onde pendem as mantas e mais copa, foices e cabaças a
tiracolo, lá vão êles agora envoltos em pó da côr do fumo, como aves
migratórias outra vez na sua rota!
Os ratinhos!
Já se não ouvem os acordes do harmónio, mas
no ar lá ao longe, lobriga-se ainda uma leve esteira de pó, a esbater-se
no fundo amarelado dos restolhos e do verde moribundo dos montados.
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